No final do mês de janeiro, a ministra Marina Silva foi devidamente ‘enquadrada’ pela mídia. O seu erro foi ter manifestado com clareza uma posição religiosa, defendendo que se ensine nas escolas públicas o chamado criacionismo ao lado do evolucionismo. O contexto foi o 3º Simpósio sobre Criacionismo e Mídia, promovido pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo, em que falou sobre a relação entre fé cristã e defesa do meio ambiente (ver palestra).
Na revista Época (edição n° 506), por exemplo, o articulista Thomas Traumann diz que a ministra cometeu ‘uma perigosa confusão entre fé e ciência’.
Hélio Schwartsman escreve um texto na Folha Online com título bombástico, ‘Ciência sob ataque’. Escandaliza-se com as ‘investidas criacionistas’, consideradas por ele meras tolices.
No site O Eco, ligado às questões da conservação da natureza, Marcos Sá Corrêa refere-se no seu artigo ao ‘perigo do criacionismo’ e ironiza a preocupação da ministra com ‘um urgente debate do século 19’.
Criacionistas de coração
A Folha de S.Paulo, num editorial do dia 20 de janeiro, foi enfática e propõe que se repudie sem contemplações a sugestão da ministra:
‘Sob uma aparência de equanimidade, a tese faz parte de uma investida anticientífica que, com firmeza, cumpre repudiar. Pode-se, é claro, sustentar que a fé pessoal é compatível com o espírito científico; que religião e ciência não se opõem.
Talvez não se oponham, mas certamente não se misturam. E é isto o que o criacionismo tenta fazer, sem base comprovada, e com um aparato de falácias que um estudante médio, no Brasil ou em qualquer parte do mundo, não tem condições de identificar. Que a religião fique onde está, e não se faça de ciência: eis uma exigência, afinal modesta, mas inegociável, da modernidade’ (‘Criacionismo, não‘).
A reação contrária à ‘ministra criacionista’ possui um pressuposto: seria absurdo ensinar na escola pública, em pé de igualdade com a teoria darwinista, que Deus criou o mundo a partir do nada. Aquela teoria, por sua vez, é vista como científica (sinônimo de ‘irrefutável’?), de índole materialista, a salvo de misticismos, que elimina por princípio e sem perdão qualquer possibilidade de um Deus criador.
Por outro lado, há setores da mídia desejosas de libertar as massas da religião, particularmente da mentalidade judaico-cristã. Em 2004, a própria revista Época encomendou uma pesquisa ao Ibope sobre o tema e deparou com resultados que lhe pareceram preocupantes: 54% dos brasileiros acreditam que o ser humano se desenvolveu, sim, ao longo de milhões de anos, mas que essa evolução foi dirigida por Deus; 75% concordam com a idéia de se ensinar nas escolas a tese de Deus criador em lugar de uma teoria da evolução baseada no ateísmo. E, cá entre nós, se formos pesquisar a opinião de outros ministros e do próprio presidente Lula, talvez descubramos que muitos deles, por acreditarem em Deus (e por desconhecerem o que significa a fundo o evolucionismo), são criacionistas de coração, como tantos brasileiros…
Aborto e fé religiosa
Seria interessante que os criacionistas radicais e os darwinistas intolerantes repensassem suas crenças. Estará a escola apta a nos ajudar nessa tarefa? Com o apoio da mídia, talvez?
De uma parte, devemos tomar consciência da relatividade das teorias científicas. A incerteza científica é uma conquista humana. Questiona as crenças, as superstições, os tabus, mas também admite sua própria permanente auto-correção. De outra parte, é saudável que os crentes, para se protegerem do fanatismo, ouçam os argumentos da ciência.
Já no século 19, um famoso pregador protestante, o norte-americano Henry Beecher, admitia a perspectiva evolucionista, sem contudo aderir ao ateísmo de inspiração darwinista. Entre os católicos, obviamente acreditar em Deus criador é também questão fechada, mas pelo menos dois papas fizeram declarações que valeria a pena levar em consideração. Pio 12, em 1950, reconheceu que a evolução do corpo humano, tal como especulam os cientistas, é compatível com a fé cristã (encíclica Humani generis) e João Paulo 2º, em 1985, reiterou essa idéia, numa palestra organizada pela Universidade de Munique: ‘Não há motivos para se criar obstáculos entre uma fé retamente compreendida na criação e um ensinamento, corretamente entendido, do evolucionismo. A evolução, com efeito, pressupõe a criação, e a criação, no contexto da evolução, apresenta-se como um acontecimento que se estende no tempo – como uma criação contínua.’
Embora interessante, a polêmica entre criacionistas e evolucionistas, tão presente na América do Norte, perde para outra, se pensarmos na realidade brasileira. A Igreja católica no Brasil pouco se pronuncia sobre o evolucionismo. A sua maior preocupação tem sido combater a prática e a legalização do aborto. No Estado de S.Paulo (09/02), o cardeal D. Odilo Scherer comenta o tema da Campanha da Fraternidade recentemente lançada pela CNBB, ‘Fraternidade e defesa da vida’. E não como simples questão religiosa:
‘A questão do aborto não deve ser imediatamente ligada a posições de fé religiosa ou a embates ideológicos, pois envolve o mais elementar direito humano, que vale para não-crentes e para crentes em Deus, da mesma forma: o direito à vida. […] Proteger, defender e promover a vida humana é tarefa primordial do Estado; sobretudo a vida indefesa e frágil, como a dos seres humanos ainda não nascidos, das crianças, dos idosos, dos pobres, dos doentes ou das pessoas com deficiência.’
Cabe-nos agora ouvir as crenças de outro ministro, o da Saúde, José Gomes Temporão, e acompanhar as reações da mídia e na mídia.
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Doutor em Educação pela USP e escritor; www.perisse.com.br