Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Crise de segurança e de amnésia

Na segunda-feira, dia 9 de abril, o noticiário do jornal gaúcho Zero Hora fez um cozido básico. Preparando cobertura especial, a reportagem intitulada ‘Cem dias de sufoco’ pretendia antecipar a data redonda que seria comemorada pela governadora Yeda Crusius (PSDB) no dia seguinte. Um intertítulo, ‘Segurança é reforçada pelo governo estadual’, destacava-se no meio do texto.

Logo abaixo do destaque, as informações reproduziam o tom da cobertura do veículo sobre segurança ao longo de três meses. ‘Apesar de cortar 10% das diárias de policiais, ações de prevenção colocaram a segurança como uma das áreas de maior visibilidade na administração estadual. Foram mais de 600 mil abordagens a veículos, 19 mil prisões e 1,1 mil armas apreendidas’ (grifo meu).

Qual o tom da manchete desse dia, 24 assassinados durante o feriado de Páscoa? Comparado com as 17 mortes da Páscoa de 2006 e com a atual tendência de queda (!!!) nos indicadores de homicídio, o ‘aumento de assassinatos surpreende’. A alta, de 41%, sequer é calculada pela reportagem. Justifica-se a disputa por tráfico de drogas e desentendimentos pessoais como crimes pouco evitáveis por ações policiais preventivas.

Prisões fictícias

Há três semanas, escrevi aqui sobre o novo jeito de noticiar do grupo RBS (que inclui o periódico Zero Hora). Mencionei, entre outros exemplos, a manchete do dia 26 de fevereiro: informava-se 8,7 mil prisões em 2007. O detalhe é que esses presos nunca chegaram aos presídios. Era um factóide vendido pelo então titular da Segurança Pública, o histriônico Enio Bacci (PDT). Foi comprado pelo jornal sem questionamento ou explicações. Em 9 de abril, segundo ZH, já eram ’19 mil prisões’.

Na tarde do dia 9, no entanto, o secretário Enio Bacci subiu rápido em direção ao telhado. Rumores davam conta de que um de seus assessores, o delegado Luiz Carlos Ribas, estaria operando para afastar autoridades que atuavam no recolhimento de caça-níqueis. Propinas de 700 mil reais sairiam dos cofrinhos desse segmento empresarial. Um dos delegados atuantes, Alexandre Vieira, titular da 17ª DP, já havia sido comunicado de sua saída daquela repartição no final de março.

O governo avaliava, nas páginas de ZH, a manutenção do secretário, ‘muito popular’, na edição do dia seguinte. Na manhã do dia 10 de abril, Enio Bacci foi isolado pela governadora durante a coletiva dos 100 dias de governo. À tarde, ele concedeu entrevista à Rádio Gaúcha, também do grupo RBS, onde voltou a martelar números de sua gestão. Mas não só isso, é claro.

‘Bandidagem sai ganhando’

Sobre os rumores de sua saída do governo, Bacci disse que eram boatos. Entrevista vai, entrevista vem, o secretário afirmou que o delegado Alexandre Vieira liderava um complô para derrubá-lo. A central de boatos funcionaria num computador da 17ª DP. O governo, Bacci à frente, estaria perto do fígado de policiais articulados com o crime organizado. Alexandre Vieira entra no ar, ao vivo. Disse que o secretário era leviano. A governadora estava na escuta e também entrou em campo. Classificou o episódio como ‘briga de guri’. No dia seguinte, Enio Bacci foi demitido. Oficialmente, porque ele optou ‘por expor, publicamente, fortes divergências internas dentro da Secretaria’.

A justificativa não convenceu ninguém, notadamente o demitido. Sem perder a pose de xerife dos pampas, do tipo que acompanhava pessoalmente prisões e blitze, ele declarou falta de ‘respaldo do governo para combater a corrupção policial’. Também acusou, abertamente, indicações e favorecimentos partidários na segurança pública.

O estilo das declarações de impacto foi mantido até a última coletiva do secretário, que agora retornará à Câmara dos Deputados como parlamentar. ‘A bandidagem sai ganhando’, disparou. E o secretário ‘muito popular’ passou a receber críticas em ZH, que também corrigiu algumas de suas informações. As ’19 mil prisões’ viraram, sem qualquer explicação, ’14 mil detenções’ a partir do dia 11 de abril.

No dia 13, a reportagem de ZH também questiona a derradeira coletiva-metralhadora, ou o ‘desabafo’ do secretário. O título é ‘Bacci não leva denúncias adiante’. Em outra matéria, intitulada ‘O último ato’, o texto e foto dão conta do cenário – com cartazes elogiosos colados nas paredes – que o secretário montou antes de deixar a Secretaria. Outra crítica, publicada na capa do dia 15, é auto-explicativa. Na avaliação do Palácio Piratini, o secretário ‘só achava tempo para eventos sob holofotes’.

Afastamentos e nomeação

Ex-assessor do ex-secretário, o delegado Luiz Carlos Ribas foi preso pela Polícia Federal em 2006. Descobriu-se o conteúdo de um maleiro no aeroporto Salgado Filho: um processo roubado, que era problema para bingueiros e assemelhados. Ribas responde hoje a processo por subtração de autos, extorsão e formação de quadrilha. Não foi julgado e se declara inocente. Não foi afastado, conforme determinação da governadora, porque ainda não se apresentou ao chefe de polícia.

O delegado Alexandre Vieira foi preso em maio 2002, acusado de extorsão, prevaricação, falsidade ideológica, lavagem ou ocultação de bens e falso testemunho. Respondeu a processo e foi absolvido. Desde então, não estava lotado em delegacias distritais ou especializadas. No dia 15 de janeiro de 2007, foi lotado como titular na 17ª DP, instalada na região central de Porto Alegre – área com muitos bingos, jogo do bicho, tráfico de drogas, prostituição e pirataria. Agora, está afastado por determinação da governadora.

O novo secretário é um delegado da Polícia Federal, José Francisco Mallmann. Até então, era superintendente da PF no Rio Grande do Sul. Seu perfil é reservado, nada histriônico – ou o contrário de seu antecessor. No sábado, dia 14, há um gracejo de assessoria na foto de capa de ZH (o carro do novo secretário pára numa blitz e a comunicação oficial – que coincidência! – está lá para registrar a cena).

O título da página interna, no sábado, acaba com a crise. ‘Yeda e Mallmann elegem corrupção como alvo número 1’. Logo no início, o texto da reportagem afirma que ‘não poderia ser diferente o desfecho de uma crise instalada por denúncias de um suposto esquema de pagamento de propinas para remoção de delegados da Polícia Civil com o objetivo de beneficiar o jogo ilegal’. No dia 15, acaba o chapeú ‘crise na segurança’. Agora, lê-se ‘sucessão na segurança’.

Atirado aos leões

ZH tem crises de amnésia. Há menos de seis anos, o ex-secretário José Paulo Bisol, titular da Justiça e Segurança Pública durante o governo de Olívio Dutra (PT), celebrizou a expressão ‘banda podre da Polícia’. Zero Hora ainda não mencionou seu nome na atual crise.

O governo petista enfrentou uma CPI da Segurança Pública – cujos resultados foram arquivados pelo Ministério Público. O relator, deputado Vieira da Cunha (PDT), era um ferrenho opositor do governo. Ele tem declarações memoráveis dessa época. Desde que seu correligionário, Enio Bacci, foi demitido, Zero Hora não mencionou seu nome.

Depois de mais de 20 páginas de cobertura da atual crise na Segurança Pública, ZH faz rápida referência, num parágrafo perdido na edição de domingo, dia 15, a uma conversa mantida entre um delegado de Polícia e Diógenes Oliveira, presidente do Clube de Seguros da Cidadania, ligado ao PT. Em outubro de 2001, o título da matéria de ZH foi ‘Uma gravação abala o Rio Grande’.

Trata-se de uma conversa que Diógenes manteve com o delegado Luiz Fernando Tubino, então chefe da Polícia Civil no governo petista. O ano da conversa é 1999. A gravação veio a público em 2001, durante a CPI. Tubino não estava mais na Chefia de Polícia. Eis o trecho que abalou o Rio Grande:

‘O que eu estou te dizendo, conversando contigo por determinação do Olívio, falei com ele. Ele disse que não só era bom, como era necessário que eu falasse contigo. Te dizer, para tu saber, dessas relações que nós temos com esse pessoal [jogo do bicho], desde que eles não interfiram no crime organizado.’

Diógenes afirmou, na CPI, ter dado um carteiraço ao usar o nome do governador. O PT gaúcho não saiu em sua defesa, mas o atirou aos leões da oposição e da imprensa. No processo judicial que respondeu, ele foi inocentado.

Editoriais reveladores

Depois de três dias de crise escancarada, na sexta-feira, 13 de abril, o editorial de ZH opina sobre a atual crise na segurança. A seguir, o primeiro parágrafo:

‘A demissão do deputado Enio Bacci da Secretaria de Segurança abre uma nova e preocupante crise política no governo de Yeda Crusius. Para o cidadão gaúcho, que vinha acompanhando com atenção e com aplausos a ação da administração Yeda, via Enio Bacci, na Secretaria de Segurança, interessam menos os aspectos políticos que envolveram e envolvem a crise e mais as reais e decisivas razões da mudança de comando na pasta. Neste sentido, ainda não está claro para a sociedade o porquê da radical decisão de afastar o secretário, nem vieram a público de maneira direta e convincente as razões e os fatos que estão na raiz do choque entre o agora ex-secretário e alguns de seus subordinados, especialmente porque afetam um integrante importante do primeiro escalão do governo, cujo trabalho vinha sendo considerado como um dos destaques da administração. Evidentemente não foi por um bate-boca de rádio, nem pelo fato de o secretário não ter atendido a uma convocação da governadora, nem por sentimentos menores, que todo o episódio se transformou em crise. Estes fatos não constituem os motivos suficientes para explicar a mudança.’

No dia 8 de agosto de 2001, o editorial sobre a crise na segurança ainda não tinha o elemento-bomba (a gravação de Diógenes Oliveira). O texto faz referência a dois fatos. A seguir, o trecho inicial:

‘Depois da estarrecedora omissão de funcionários da Secretaria da Justiça e da Segurança durante a depredação do relógio dos 500 Anos em Porto Alegre, em abril do ano passado, quando uma inspetora chegou a ordenar a saída da Brigada Militar do local, a sociedade gaúcha está diante de outro fato intrigante e grave nesta área. Em depoimento à CPI da Segurança Pública da Assembléia, o delegado Alexandre Vieira confirmou ontem detalhes de incidente registrado durante o Fórum Social Mundial, em janeiro deste ano, que lança novas suspeitas sobra a política de segurança pública no Estado. Diante do inusitado do caso que, de acordo com o relatório da autoridade policial, evidencia crimes tais como ‘prevaricação, peculato, constrangimento ilegal e outros’, cabe agora aos parlamentares o compromisso de esclarecê-lo em profundidade. Pelas suas características, o episódio que acabou se transformando em alvo de investigação da CPI deveria limitar-se à apreensão em flagrante de um jovem com drogas por policiais da Brigada Militar no acampamento em que se encontravam participantes do Fórum Social Mundial.’

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Jornalista, Porto Alegre, RS