No jornalismo, freqüentemente se recorre ao discurso de crise profissional. Espremido entre os interesses políticos e as pressões do mercado, o jornalista se apega a essa idéia para legitimar sua independência e função social, pois a prática cotidiana dificilmente se aproxima da auto-imagem da profissão. Dessa forma, a análise que se faz da realidade do jornalismo se confunde com o discurso normativo sobre o que deveria ser essa atividade de um ponto de vista idealizado.
Atrás do discurso de crise, existe um complexo mecanismo de construção e reificação do jornalismo enquanto realidade socialmente construída. Através dele, o conflito entre os mitos da profissão e a prática cotidiana ajudam a explicar a identidade social do jornalista. A seguir, uma breve exposição dessa relação.
O mito da ‘idade de ouro’ da imprensa
A crise do jornalismo se baseia, antes de tudo, no mito de uma ‘idade de ouro’ da atividade, que teria ocorrido por volta da década de 1950. Nessa época se construiu a definição do jornalismo informativo, independente, compromissado com a verdade e com o interesse público. Essa concepção foi expressa pela Teoria da Responsabilidade Social no Jornalismo, elaborada nos Estados Unidos pela Comissão para a Liberdade de Imprensa. A teoria é, sobretudo, uma resposta à crescente concentração empresarial dos meios de comunicação norte-americanos. Por isso, ela institui diretrizes que orientaram a prática jornalística de forma a melhorar a qualidade da produção noticiosa e separá-la da necessidade de gerar lucros
A transformação dos jornais em empresas capitalistas a partir dos anos 1970 e a conseqüente submissão das redações à lógica do mercado teriam levado a um declínio desse ideal. O que o mito da idade de ouro faz, nesse caso, é buscar separar o que seria ‘o verdadeiro jornalismo’ dessa versão corrompida de profissão, através de uma espécie de apropriação da teoria do bom selvagem. Assim, o jornalismo seria intrinsecamente bom, o mercado é que o corrompe.
Quando confrontado com o cotidiano das redações, mesmo nos anos 1950, o mito da idade de ouro parece menos consistente. Daniel Hallin explica que a definição de um jornalismo informativo e objetivo nos Estados Unidos, muitas vezes levava à passividade dos veículos frente às versões oficiais. ‘Se na prática o jornalismo de informação asséptica significava conceber validade auto-evidente às declarações oficiais, parecia agora que estas podiam se converter em ‘inoperantes’, tal e qual Nixon havia feito durante o Watergate; por isso, os jornalistas se sentiam atraídos a preencher esse vazio’. Ele explica também que, diferente do que se imagina, o jornalismo hoje consegue ser mais acessível e atrativo, capaz de atingir um público muito mais amplo e diversificado do que durante sua ‘idade de ouro’.
O mito do ‘quarto poder’
Visto como o quarto poder o jornalismo se impõe como algo essencial à construção dos regimes democráticos. Os governos, para funcionar bem, precisam prestar contas de suas ações aos cidadãos. A imprensa, uma entidade independente e apartidária, cumpre o papel de fiscalizar os desvios do poder.
Partindo-se do mito do quarto poder, a crise profissional deriva da subserviência das empresas de comunicação frente às autoridades, sobretudo porque o governo é um grande anunciante. Mas se explica sobretudo pelas dificuldades impostas aos jornalistas no exercício dessa função. O ritmo intenso de trabalho dos repórteres e a explosão das assessorias de imprensa limita o acesso dos jornalistas às fontes, deixando-os cada vez mais restritos às informações oficiais (press releases, notas, entrevistas coletivas etc). O cerceamento do exercício do quarto poder explica a má qualidade da cobertura política – matérias burocráticas e sem interesse – ao mesmo tempo que o ideal de transparência democrática é questionado.
A crítica que se faz à noção de quarto poder é que ele se baseia numa visão maniqueísta. Como um jogo de gato e rato, os jornalistas (heróis) devem zelar pelos interesses da sociedade, vigiando políticos (vilões) sempre passíveis de cometerem deslizes em benefício próprio. É uma concepção simplista que demoniza a classe política, ignora os interesses da imprensa e do jornalista e produz uma definição reduzida do jornalismo político – como se toda matéria política se resumisse à procura de escândalos, ao questionamento do poder. Finalmente, o mito do quarto poder funciona como um poderoso mecanismo de preservação e legitimação do jornalista: qualquer forma de intervenção do governo é vista como um atentado ao princípio fundamental da liberdade de expressão.
O mito do profissionalismo
Parte da crise no jornalismo pode ser explicada pela invasão do território profissional por jornalistas-amadores: blogueiros, indivíduos ligados à mídia alternativa, voluntários nas rádios comunitárias etc. Ou, ainda, pela explosão de empresas não-jornalísticas que passam a atuar na produção de informações, como os jornais produzidos por instituições públicas e privadas que preferem se dirigir ao público sem passar pela mediação da imprensa tradicional. Neste caso, está expressa a idéia de que a legitimidade profissional (o registro no Ministério do Trabalho e o diploma em jornalismo) e institucional (o noticiário produzido pelas empresas jornalísticas) garantiriam a qualidade do produto. Na medida em que essa realidade é contestada, estaríamos no vale-tudo das informações falsas, interessadas ou mal apuradas.
É difícil dizer até que ponto a diversificação dos produtos ‘jornalísticos’ levou realmente a uma perda da qualidade informativa. Aliás, nunca é tarde para lembrar que erros e arbitrariedades acontecem também com as notícias produzidas pelas empresas tradicionais e por jornalistas profissionais. O que nos interessa aqui é ver como o discurso do profissionalismo acusa o surgimento desses novos espaços de produção informativa como uma das causas da crise profissional. Esse discurso integra as estratégias de apropriação desses espaços pelos jornalistas. Assim, se hoje uma quantidade imensa de informações prolifera nos blogs e nos veículos institucionais, a figura do jornalista continua essencial para garantir a qualidade do que está sendo noticiado. Por isso, esses espaços teoricamente deveriam ser ocupados por jornalistas profissionais.
Mitologias podem não corresponder à realidade, do ponto de vista da epistemologia científica. Mas elas possuem seu poder explicativo, pois expressam uma cosmovisão que, ao ser aceita pelos membros de uma comunidade, passa a integrar a realidade tout court. Por mais que os mitos gregos nos pareçam absurdos enquanto narrativas sobre a realidade, eles participaram da organização social e do estabelecimento de normas de conduta para os membros daquela sociedade. Da mesma forma, a identidade do jornalista depende dos seus mitos para se construir; ela, contudo, é permanentemente confrontada pelo que acontece no dia-a-dia das redações. O resultado é o sentimento de crise profissional.
Referências
HALLIN, Daniel. Comercialidad y profesionalismo en los medios periodísticos estadunidenses Cuadernos de Información y Comunición (CIC Digital) nº 3, 1996, acessado em 11/07/2003, disponível aqui
MARCONDES FILHO, Ciro. Comunicação & Jornalismo – A Saga dos Cães Perdidos. São Paulo, Hacker Editores, 2000.
PEREIRA, F. H. . Jornalismo e Construtivismo: a atividade como realidade socialmente construída. Revista PJ:Br (São Paulo), v. 5, p. 5, 2007.
RUELLAN, Denis. Le Professionnalisme du Flou – Identité et savoir-faire des journalistes français. Grenoble (França), Press Universitaires de Grenoble, 1993.
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Jornalista, doutorando da UnB