Nas semanas anteriores ao encaminhamento do pedido de impeachment pela Câmara dos Deputados, instalou-se nas redes sociais o discurso de que jornais estrangeiros denunciavam um golpe de Estado no Brasil. A história confirmava a versão do governo de Dilma Rousseff para os fatos. Não é possível dizer se foi plantada por uma agência publicitária ou se surgiu espontaneamente. Mas as redes funcionam bem para distribuir publicidade com cara de notícia. Informação nelas corre rápido e não há nenhum filtro de qualidade. Em plena crise, ambos os lados abusaram delas. Diferentemente da versão que emplacou, a imprensa estrangeira não viu golpe.
Para construir a tese de forma convincente, os autores aproveitaram-se da confusão entre notícia e opinião. Notícia vem do trabalho de repórteres que buscam relatar os fatos. Opinião é outra coisa. Há editoriais (a opinião do jornal), colunas (pessoas que o jornal contrata para manifestar sua opinião com frequência) e artigos avulsos. A divisão é logo reconhecida por leitores experientes do impresso, mas não é clara quando textos são distribuídos por links avulsos para sites.
Um dos artigos mais citados foi “A razão real que [sic] os inimigos de Dilma Rousseff querem seu impeachment”, publicado pelo jornal britânico The Guardian. Assinado pelo brasileiro David Miranda, o texto questiona as razões da oposição, ataca a grande imprensa, mas não chega ao ponto de afirmar que havia um golpe em curso.
Envolvimento dos deputados
Miranda é casado com o jornalista Glenn Greenwald, que concedeu entrevista à principal correspondente internacional da CNN, Christiane Amanpour. No vídeo, distribuído como “denúncia da CNN”, ele afirmou que “plutocratas veem uma chance de se livrar do PT por meios antidemocráticos”. Citou o extenso envolvimento de deputados, a começar pelo presidente afastado da Câmara, Eduardo Cunha, com escândalos de corrupção. Mas, mesmo quando questionado diretamente, evitou o termo “golpe”. Americano, Greenwald vive no Brasil e é um premiado e respeitado jornalista que se especializou na difícil relação entre direitos civis e tecnologias digitais.
A opinião de um casal, portanto, foi o carro-chefe da tese de que a imprensa estrangeira via golpe. Mesmo que nem eles próprios afirmassem isso. O Guardian, jornal que publicou o artigo de Miranda, se manifestou em editorial, publicado com o título “Uma Tragédia e um escândalo”. Nele, aponta os que considera responsáveis pela crise em que nos encontramos: “transformações da economia global, a personalidade da presidente, o PT ter abraçado um sistema de financiamento partidário baseado em corrupção, o escândalo que estourou após as revelações, e uma relação disfuncional entre Executivo e Legislativo”. Não poupa o Congresso, não fala em golpe.
Outros órgãos importantes se manifestaram por editoriais.
O do Washington Post começa assim: “A presidente brasileira Dilma Rousseff insiste em que o impeachment levantado contra ela é um ‘golpe contra a democracia’. Certamente não o é”. A partir daí, desanca tanto o Executivo quanto o Congresso. O único elogio que os editorialistas conseguem fazer ao país é que, no fundo, “esse é um preço alto a pagar pela manutenção da lei – e, até agora, essa é a única área na qual o Brasil tem ficado mais forte”.
A revista The Economist também opinou. “Em manifestações diárias, a presidente brasileira Dilma Rousseff e seus aliados chamam a tentativa de impeachment de golpe de Estado.” E segue: “A denúncia de golpes tem sido parte do kit de propaganda da esquerda”. O tom é esse.
Pouca atenção ao outro lado
O editorial do francês Le Monde, “Brasil: este não é um golpe”, suscitou críticas do ombudsman, Frank Nouchi, que o considerou pouco equilibrado. Para ele, os editorialistas não levaram em conta o outro lado e passaram batido, por exemplo, pelos escândalos de Cunha. Nouchi citou, também, um relatório crítico à distribuição de concessões de rádio e TV assinado pela ONG Repórteres sem Fronteiras. Apostando que ninguém leria o relatório, a observação foi abraçada como indício de que o Monde criticava a imprensa. A crítica do relatório, porém, é ao fato de que políticos demais são donos de concessões que lhes garantem poder local.
A cobertura estrangeira não é maniqueísta e nenhum dos editoriais de grandes veículos é superficial. Todos veem a estrutura política brasileira derretendo. E nenhum compra a ideia de que há um golpe em curso.
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Pedro Doria é colunista dos jornais O Globo e O Estado de S. Paulo e da rádio CBN.