São Luiz do Paraitinga (‘paraitinga’, em tupi-guarani, quer dizer ‘águas claras’) teve um início de ano trágico quando suas belas e seculares construções foram tragadas por águas escuras, de barro e lama, resultante do descaso também secular de nossos governantes com a limpeza do Rio Paraitinga. Como não canso de constatarn, minha ignorância desafia qualquer limite: não consegui, até fins de 2009, ir a essa cidade bucólica, tão cheia de vida e história, com seus pouco mais de 11 mil habitantes e que remonta a fins do século 17 como entreposto para facilitar o trabalho dos bandeirantes na Capitania de São Paulo.
A imprensa não tratou a Imperial Cidade de São Luiz do Paraitinga com a deferência devida. Proporcionalmente foi a maior tragédia dos últimos anos causada pelas chuvas. E foi a chuva que atingiu o Vale do Paraíba neste começo de ano que alagou São Luiz do Paraitinga, onde aproximadamente 9.000 pessoas foram obrigadas a deixar suas casas – quase toda a população – de acordo com estimativas da Defesa Civil do Estado de São Paulo.
Prédios históricos estão danificados, entre eles a igreja matriz São Luiz de Tolosa, construída no século 19, que desabou no segundo dia do ano. O transbordamento do Rio Paraitinga, que corta a cidade, tendo subido cerca de 12 metros além do habitual nessa época do ano, inundou praticamente todo o município. Construções, imóveis em geral, submergiram. Todo o centro histórico, que abarca cerca de 90 imóveis tombados pelo patrimônio histórico, foi inundado.
A cidade ficou isolada, sem energia e com o fornecimento de água comprometido e os acessos por terra foram interditados. Até essa maravilha da pós-modernidade, a comunicação por celular, ficou prejudicada.
Condenação fácil
Para a Rede Globo só existe os mortos de Angra dos Reis, e a tragédia de São Luiz passa ao largo. É que em Angra fica a ‘Ilha de Caras’ e São Luiz do Paraitinga é só uma cidadezinha histórica, nada além disso. É verdade que morreram 52 pessoas em Angra. É verdade também que 9.000 pessoas foram desalojadas na Cidade Imperial. Em Angra caíram pousadas e casas, em São Luiz desabaram, além de casas térreas e de sobrados, quantidade impressionante de edificações que dão testemunho de nossa história.
O que lemos nos jornais e assistimos nos canais de tevê e nas rádios é o que está à superfície: quantos morreram, quantos estão desalojados, quantos imóveis moveram-se, que providências tomou o governador José Serra nas duas vezes em que esteve em São Luiz do Paraitinga e por que o governador Sérgio Cabral demorou tanto a ir a Angra.
Não ficamos sabendo o que é mais importante para evitar novas catástrofes na região: existem obras próximas dos rios? Contatou-se a ocorrência de desmatamentos que causam assoreamento? As margens do Rio Paraitinga foram aterradas? Qual o estado das matas ciliares? Qual o impacto no rio das plantações extensivas de eucalipto que invadem a região? Algumas construções desabaram devido à ocupação inadequada?
Pelos vídeos a que assisti, a cidade parece aqueles campos baldios de Leningrado nos estertores da Segunda Guerra Mundial. Por outros motivos São Luiz do Paraitinga me traz a trágica lembrança da cidade basca que visitei em novembro de 1993, Guernica. Esta pequena cidade dista poucos quilômetros de Bilbao, a capital basca. No entardecer do fatídico 26 de abril de 1937, às 16h40, pouco antes da audição radiofônica do Angelus, Adolf Hitler iniciaria suas experiências buscando aferir o poderio bélico alemão, despejando bombas de 500 kg e mais de 3.000 projéteis incendiários de alumínio sobre a população civil de Guernica. A população olhava assustada para o alto, para o céu que não mais os protegia e não havia para onde correr: o fogo caía de cima, matando ao ar livre e matando soterrados os que buscavam abrigo nas construções.
A população de São Luiz do Paraitinga devia estar também muito assustada com a avalancha das águas – afinal, o principal rio ter seu nível aumentado em 12 metros é qualquer coisa de extraordinário e de… medonho. No caso de Guernica havia, sim, a intencionalidade de Hitler em conluio com Francisco Franco de testar suas armas de destruição em massa. É bem mais fácil condenar os extremistas bascos ainda em ação na Espanha se não houver conhecimento da história dos bascos em sua bucólica Guernica.
Praças e mercados
Não existe nada que irmane mais os seres humanos do que o sofrimento coletivo inesperado. Estes dão-nos a exata medida de nossos infortúnios e impotência. É que a dor não tem credo, nem língua, nem pátria. E não tem partido político. Em situações como essas nascem os atos de heroísmo, as expressões de generosidade, e abrem-se as comportas da bondade humana, uma e tantas vezes implorada, mas presente apenas nas grandes provações a que estamos, inexoravelmente, sujeitos.
Para não dizer que meus laços afetivos com a Cidade Imperial eram praticamente inexistentes, a bem da verdade faço questão de mencionar que tenho sim um velho amigo que ali reside. Velho pela expressão genuína de admiração, mas nova amizade se vista pelo retrovisor do tempo. Não sei se sua casa foi invadida pelas águas. Não sei se algum membro de sua família encontra-se desalojado. Mas sei que muitos de seus amigos, citadinos como ele, devem olhar com grave consternação o que foi feito de sua cidade. E isso aperta-me o coração.
O governo federal já anunciou a liberação de R$ 80 milhões para minorar a situação caótica em que ficou Angra dos Reis. E Paraitinga, quando será objeto de ajuda financeira estadual e federal? Há cerca de 80 prédios destruídos e 146, interditados. Apesar da sugestão do governador José Serra para que a cidade celebre seu tradicional carnaval, a prefeitura de São Luiz do Paraitinga já avisou que, neste ano, não haverá carnaval. Chega a ser hilário um governante pedir a uma população sofrida, que viu as águas levarem parte de seu patrimônio material e sobretudo afetivo, como a igreja matriz onde se casaram e batizaram os filhos, que dê uma pausa na dor porque, a pedido de Sua Excelência, a folia pede passagem.
Ave São Luiz de Paraitinga, aqueles que pisaram em tuas ruas, aspiraram o perfume de tuas flores, frequentaram suas praças e mercados, aqueles que tantas vezes consolaram os olhos ante o magnífico conjunto de solenes casarões… te saúdam!
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Analogia doída
Reproduzido do
Terra Magazine, 7/1/2010; título original ‘Morte das casas de Ouro Preto, de Carlos Drummond de Andrade‘A lembrança é do jornalista e escritor Humberto Werneck. O poema ‘Morte das casas de Ouro Preto’, de Carlos Drummond de Andrade, guarda uma associação quase mágica com os desastres provocados pelas chuvas nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Tragédias sempre postas na folha corrida da chuva. Drummond, no livro Claro enigma (1951): ‘Nem parecia, na serra,/ que as coisas sempre cambiam/ de si, em si. Hoje vão-se. (…) A chuva desce, às canadas./ Como chove, como pinga/ no país das remembranças!’.
‘Onde se lê Ouro Preto, leia-se São Luiz do Paraitinga. Ou Cunha. Ou Angra. Qualquer dessas cidades que se desmilinguem sob as chuvas deste começo de ano’, sugere Humberto Werneck, autor de O desatino da rapaziada (no qual Drummond é personagem assíduo), de O santo sujo‘ e do recém-lançado O pai dos burros.
Eis o poema.
Morte das casas de Ouro Preto
Carlos Drummond de Andrade
Sobre o tempo, sobre a taipa,
a chuva escorre. As paredes
que viram morrer os homens,
que viram fugir o ouro,
que viram finar-se o reino,
que viram, reviram, viram,
já não vêem. Também morrem.
Assim plantadas no outeiro,
menos rudes que orgulhosas
na sua pobreza branca,
azul e rosa e zarcão,
ai, pareciam eternas!
Não eram. E cai a chuva
sobre rótula e portão.
Vai-se a rótula crivando
como a renda consumida
de um vestido funerário.
E ruindo se vai a porta.
Só a chuva monorrítmica
sobre a noite, sobre a história
goteja. Morrem as casas.
Morrem, severas. É tempo
de fatigar-se a matéria
por muito servir ao homem,
e de o barro dissolver-se.
Nem parecia, na serra,
que as coisas sempre cambiam
de si, em si. Hoje vão-se.
O chão começa a chamar
as formas estruturadas
faz tanto tempo. Convoca-as
a serem terra outra vez.
Que se incorporem as árvores
hoje vigas! Volte o pó
a ser pó pelas estradas!
A chuva desce, às canadas.
Como chove, como pinga
no país das remembranças!
Como bate, como fere,
como traspassa a medula,
como punge, como lanha
o fino dardo da chuva
mineira, sobre as colinas!
Minhas casas fustigadas,
minhas paredes zurzidas,
minhas esteiras de forro,
meus cachorros de beiral,
meus paços de telha-vã
estão úmidos e humildes.
Lá vão, enxurrada abaixo
as velhas casas honradas
em que se amou e pariu,
em que se guardou moeda
e no frio se bebeu.
Vão no vento, na caliça,
no morcego, vão na geada,
enquanto se espalham outras
em polvorentas partículas,
sem as vermos fenecer.
Ai, como morrem as casas!
Como se deixam morrer!
E descascadas e secas,
ei-las sumindo-se no ar.
Sobre a cidade concentro
o olhar experimentado,
esse agudo olhar afiado
de quem é douto no assunto.
(Quantos perdi me ensinaram.)
Vejo a coisa pegajosa,
vai circunvoando na calma.
Não basta ver morte de homem
para conhecê-la bem.
Mil outras brotam em nós,
à nossa roda, no chão.
A morte baixou dos ermos,
gavião molhado. Seu bico
vai lavrando o paredão
e dissolvendo a cidade.
Sobre a ponte, sobre a pedra,
sobre a cambraia de Nize,
uma colcha de neblina
(já não é a chuva forte)
me conta por que mistério
o amor se banha na morte.
(em Claro Enigma)
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Jornalista e escritor, mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter