Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Da arte de comer mosca e imaginar-se pitbull

Quando Veja saiu com o ‘vídeo da propina’, em maio último, não apareceu nenhum jornal ou jornalista para cobrar a verdadeira história daquela arapongagem de alto coturno. Ou para investigá-la. O corporativismo e a indolência não deixaram.


Quando ficou evidente que a direção da Editora Três havia cedido à argumentação de Marcos Valério e engavetara as denúncias da ex-quase-futura coelhinha Fernanda Karina Somaggio, o caso foi enrustido. O corporativismo e a indolência não permitiram que o assunto prosperasse.


Quando se descobriu que o Jornal do Brasil, ainda em setembro de 2004, oito meses antes do estouro, levantara o caso do ‘mensalão’ (ainda sem este nome); e que antes ainda, em março daquele ano, o jornalista Carlos Chagas contara esta história de horror em sua coluna na Tribuna da Imprensa, ninguém se mexeu para caracterizar o vexame. A imprensa brasileira não tem o salutar costume de cobrir a própria imprensa – ainda mais admitir erros. Foi em frente, como se nada acontecera.


Quando a CartaCapital, em 30 de outubro de 2002 contou parte da história sobre o acordo entre o PL e o PT, ninguém foi atrás. Nem a própria revista. Não era politicamente correto colocar sob suspeita a vitória do ex-sindicalista Lula da Silva, o queridinho das elites.


Indignação babosa


Nossa imprensa está habituada a comer mosca. Por gosto, necessidade ou devoção ao espírito de manada, nosso esplêndido plantel de veículos jornalísticos não usa o seu faro. Prefere usar sua audição, orienta-se apenas pelo barulho.


Quando na quinta-feira (11/8) o marqueteiro Duda Mendonça abriu o bico para admitir na CPI do Mensalão que os pagamentos pelos serviços prestados ao PT foram depositados em contas de paraísos fiscais, a mídia despertou para o ‘fenômeno’ do marketing político. Tornou-se impossível ignorar suas distorções e dimensões. Então desembestou em busca de alguma coisa para incriminar o presidente Lula.


De novo: a imprensa não deu trela ao olfato, preferiu guiar-se pelos ouvidos na direção do estrépito. O tal ‘fenômeno’ do marketing político é velho [ver remissões abaixo]. Tornou-se visivelmente tóxico na vitória de Celso Pitta sobre José Serra no segundo turno da disputa pela prefeitura de São Paulo, em 1996.


O comprometimento do nosso processo eleitoral começou naquele exato momento através da injeção de doses cavalares de dinheiro de origem obscura para financiar a espetacularização do debate político. Obra de Sua Majestade D. Duda Mendonça, que uma mídia embasbacada transformou em Midas.


Nenhum jornal ou jornalista ousou questionar aquele aviltamento do processo democrático. Estavam por demais envolvidos na rinha (pró ou contra os tucanos) para perder tempo numa investigação que poderia atrapalhar o grande circo eleitoral do qual tiram tantos proveitos.


O mesmo aconteceu na disputa presidencial de 2002: não seria politicamente correto expressar desconfianças sobre a campanha de um ex-líder sindical que agora enfrentava ‘tudo isso que está aí’ e ‘as elites’. Duda Mendonça era o Grande Mago e seu número não poderia ser interrompido. Muito menos colocado sob suspeição.


Desabou tudo: Duda chora, Lula deplora, Dirceu desculpa-se pela campanha de calúnias que orquestrou contra o seu antecessor no governo FHC, e aqueles mesmos jornalistas e opinionistas que ostensivamente deixaram de lado seus compromissos de isenção até 2002, agora sentam o sarrafo impiedosamente, preconizam soluções excepcionais e babam de indignação. Estão atrasados alguns anos – esse é o problema. Perderam o bonde.


Comeram mosca. Agora, com problemas de consciência ou, na falta dela, com a digestão comprometida pela moscaria engolida, tentam açular políticos irresponsáveis para aventuras insensatas.


Arroto bovino


A imprensa como instituição está calada, mas alguns veículos e alguns de seus arautos estão frenéticos, tomados por um paroxismo descabido. De nada adiantou antecipar a edição Época para chegar às bancas numa sexta-feira particularmente delirante. A matéria era rigorosamente pífia, puro ‘declaracionismo’, e baseada no relato de um ex-deputado que se assume como corrupto, presidente de um partido corrupto e que não merece qualquer crédito. Sobretudo porque pretendem, o ex-deputado e seu partido, beneficiar-se de soluções excepcionais.


De nada adiantou antecipar a pesquisa eleitoral do DataFolha (normalmente veiculada aos domingos) para alimentar os desvarios daquela mesma sexta, dia 12 do Mês dos Desgostos. No início da semana estava esquecida (ao contrário do que acontecia quando animava pelo menos uma semana inteira).


Há momentos em que a tensão intrínseca dos fatos não deixa aos jornalistas outra saída que não a prudência. Este falatório dos opinionistas e editores sensacionalistas sobre impeachment etc. não tem base legal, é pura especulação. Incapacidade para trabalhar os fatos. Fruto da impaciência antidemocrática. Eructação bovina, depois da longa dieta à base de abjetas moscas.