Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Da misoginia à pirotecnia

Não é de hoje que a mídia chamada “golpista” por uns, “reacionária” por outros e “incompetente” para muitos utiliza imagens depreciativas da presidente Dilma Rousseff, revelando que, para além de todos os adjetivos antes elencados, configura-se mais do que nunca como misógina. O presente comentário analisa duas imagens eloquentes deste comportamento que tem como vítima uma mulher democraticamente eleita para governar um país. Com recursos de fotomontagem ou foto em perspectiva, o jornalismo praticado pelos meios hegemônicos constrói sentidos e revela seu caráter ideológico perverso: “Não deixarás viver a feiticeira”.

A capa de Veja da edição de 11 de maio traz dois perfis cabisbaixos sobre um fundo sombrio, contrastando com o vermelho forte da chamada em letras garrafais. Os perfis: no primeiro plano, a presidente Dilma Rousseff; logo atrás, o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha. A chamada: “Tchau, querida Tchau, querido”. Como subtítulo, a frase: “Com o impeachment de Dilma e a queda de Cunha, o Brasil tem chance histórica de fazer uma limpeza inédita na vida pública”.

Tanto Veja como as demais revistas semanais, com exceção de Carta Capital, continuam sua marcha rumo ao golpe, num esforço nefasto e contínuo… Para qualquer jornalista que se preze, na semana passada o foco deveria ser a derrubada de Eduardo Cunha e tudo o que ele representa. Na linha sucessória do vice-presidente Michel Temer e de Cunha, praticamente todos estão envolvidos com algum tipo de acusação, indícios de contravenções ou denúncia de toda ordem.

Pesam tanto ou mais acusações contra o eventual novo presidente Temer do que com relação à ainda presidente Dilma, muito embora a revista já a tenha varrido para debaixo do tapete com promessas de uma “limpeza inédita na vida pública”. Muito mais do que contra a presidente que obteve 54,5 milhões de votos em 2014 pesam acusações contra o presidente do Senado Renan Calheiros; o senador Zezé Perrela (o homem do helicóptero da cocaína); o relator do golpe no Senado Antônio Anastasia; o relator do golpe na Câmara dos Deputados Jovair Arantes; o senador José Serra; o senador Aécio Neves; o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso; entre tantos outros.

Porém, parece que o foco é eliminar Lula das eleições de 2018 e Dilma do comando da Nação. A retardada pressa do Supremo Tribunal Federal em afastar Cunha, e com razão, segue dois caminhos: 1- aliviar a pressão da opinião pública e oferecer, enfim, a cabeça de alguém de peso da oposição; 2 – com Cunha “fora do baralho”, evitar ou retardar o julgamento da ação da Rede que poderia colocar em risco o próprio nome de Temer na presidência e o afastamento de Dilma.

Embora tenha se antecipado e dito em capa da edição do dia 20 de abril que Dilma estaria “fora do baralho”, Veja parece continuar se preocupando com a presidente, num esforço que volta a se repetir até que ela seja defenestrada por completo da vida pública. Tal intenção continua em “primeiro plano”, literal na montagem da capa que a coloca à frente de Cunha e metafórica quando a elege sistematicamente como notícia, embora seja carta “fora do baralho”.

Assim, quando Veja fala em “limpeza inédita na vida pública”, deveria focar nos nomes cotados para o eventual governo Temer, praticamente todos envolvidos com corrupção. Eduardo Cunha cai porque há sobre ele provas concretas de corrupção. Dilma talvez caia, mas não porque haja contra ela provas concretas. E, no entanto, a capa deixa supor que há entre os dois uma equivalência de atos, como se estivessem lado a lado, desconsiderando que foi a partir da não aceitação pela presidente da chantagem de Cunha que este armou o circo do golpe do impeachment, como vingança. Voltaire tem um verso eloquente para quando não se encontra respaldo para a condenação de alguém: “Os caluniadores são como o fogo que enegrece a madeira verde, não podendo queimá-la” (Voltaire).

Não podendo queimar Dilma, continuam tentando.

Estadão tenta queimar Dilma, mas sai chamuscado

Em tempos obscuros, em que a sombra do impeachment paira sobre um governo democraticamente eleito, nunca o elemento fogo esteve tão em alta. Da tocha olímpica que desfila seu fogo ancestral pelas cidades brasileiras à fala do ex-presidente Lula dizendo ser o único que poderia “incendiar o país” (embora tenha ressalvado que não quisesse fazê-lo), a chama alastra-se na velocidade da pólvora. Não bastasse isso, contamos agora com o espetáculo pirotécnico da mídia a atear fogo em uma mulher que legitimamente chegou ao poder, atualizando o sentido do versículo secular “não deixarás viver a feiticeira” (Êxodo, XXII, 18).

Conforme Bertrand Russel (1977), em decorrência desta frase, só na Alemanha, do século de 1450 a 1550, quase 100.000 mulheres foram condenadas à morte. Acusadas de heresia, bruxaria ou traição, a pena a elas imputada era a morte por fogo. A utilização de fogueiras pela Inquisição simbolizava purificação diante da desobediência a Deus, uma vez que o fogo é representativo do Inferno.

Execução de Anneken Hendriks, condenada por heresia no século XVI

Quase seis séculos depois, o Estado de S. Paulo do último dia 4 de maio investe-se da aura do inquisidor e, pelas mãos do fotógrafo Dida Sampaio, acende a pira que faz o rosto de uma mulher queimar. A foto, tirada durante a cerimônia de acendimento da tocha Olímpica, realizada na terça-feira (3) no Palácio do Planalto, registra a presidente Dilma Rousseff junto ao fogo olímpico. Devido ao ângulo obtido pelo fotógrafo, tem-se a impressão que o rosto de Dilma está em chamas, o que provocou um debate acalorado (com o perdão do trocadilho!) nas redes sociais.

Se o termo pirotecnia designa a técnica de utilização do fogo ou de explosivos para fins de entretenimento visual, nada mais apropriado. Usar o recurso do truque de perspectiva no jornalismo não é novidade e não raras vezes rende honrarias ao autor da façanha. A pesquisadora Sylvia Moretzshon, que também analisou muito apropriadamente a capa do Estadão em ponto de vista do último dia 6 de maio, traz vários exemplos desta prática na história política brasileira, como a foto da presidente Dilma sendo “atravessada” pela espada de um militar em 2011.

Divulgação / Facebook Estadão

Tais fotos em perspectiva, atraentes pelo jogo inusitado e jocoso que contêm, trazem em si o reflexo sociocultural, econômico e político de quem a realiza ou a veicula, convertendo-se assim num aparelho reprodutor de ideologia. Descaracterizando a realidade, sem propriamente inventá-la, revelam a primazia da estética sobre a ética, quando não raro abandonam a ética para ficar com a pilhéria.

E sabe-se que uma das formas assumidas pela misoginia é o ato de ridicularizar uma mulher, tornando seu corpo e/ou ações risíveis. Outra forma é a violência, também expressa na foto quando alude à morte de uma mulher por fogo. Egô misôn gynaikas (“porque eu odeio as mulheres”) é o verso do dramaturgo grego Aristófanes que teria dado origem à palavra “misoginia” e ao seu significado relativo à aversão a mulheres.

Tanto O Estadão quanto Veja, com suas inclinações sexistas e ideológicas, ao se referirem a Dilma em fotos montadas ou em perspectiva, sugerem que ela não só está fazendo um mau governo, mas que, enquanto mulher, precisa ser incinerada em praça pública. Colocam-na como uma herege que deve ser queimada no fogo da mídia, destituída de sua integridade e poder.

Cortes, manipulações, edições distorcidas de imagens, e até montagens, sempre estiverem presentes no fotojornalismo brasileiro e muitas vezes serviram para driblar a censura de alguns governos. Entretanto, o que se verifica nas imagens aqui analisadas é que em algumas situações estão a serviço do preconceito, da desinformação e muitas vezes refletem a tendência misógina de vários segmentos da grande mídia.

Referências bibliográficas

Russell, Bertrand. Ética e política na sociedade humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.

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Jeana Laura da Cunha Santos é pós-doutoranda no POSJOR/UFSC e pesquisadora no objETHOS