Após a recente reportagem do The Intercept Brasil sobre o vídeo com a participação do senador Marcos do Val (Podemos-ES) no chamado “gabinete paralelo” e a pouca repercussão do caso pela imprensa capixaba, fui provocado a retomar a dois antigos questionamentos: 1) Qual a corresponsabilidade do jornalismo policialesco no fortalecimento da Bancada da Bala nas eleições de 2018? e 2) Quem é o midiático Marcos do Val? Ainda mais que apareceu nas últimas semanas como o conselheiro da área de Segurança do pré-candidato à Presidência Sérgio Moro.
A reflexão foi melhor sistematizada quando pensava nas respostas para uma entrevista ao Blog do Tinoco, do colega jornalista Edivaldo Euzébio dos Anjos (Tinoco dos Anjos). E as respostas foram mais ou menos assim:
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Blog do Tinoco – O que te levou a escrever um texto denunciando o senador capixaba Marcos Do Val como uma fraude política?
Edgard Rebouças – Não foi uma denúncia de fraude, foi uma constatação de que, na onda da dita “nova política”, o Espírito Santo elegeu dois senadores – Fabiano Contarato (Rede) e Marcos do Val (então PPS) – sem nenhuma experiência ou atuação na militância política/partidária. De cara já foram eleitos para o mais alto cargo do Poder Legislativo nacional. O Contarato, pelo menos, tem formação em Direito e é servidor público de carreira – delegado da Polícia Civil –, já o outro… . Ambos tiveram muitos votos por causa da pauta da Segurança e pegaram carona no discurso do candidato à Presidência, que sempre atuou na linha dos ideais da Bancada da Bala. O problema é que a inocência de parte do eleitorado capixaba foi conduzida a acreditar e a votar em um candidato completamente desconhecido da população em geral, a não ser por suas participações em programas policialescos como comentarista.
O deputado federal Amaro Neto (Republicanos) também se aproveitou do prestígio por ser apresentador de um telejornal policialesco – o Balanço Geral, da TV Vitória/Record –, mas já era deputado estadual. Nesta mesma linha midiática, ainda foram eleitos os também apresentadores de TV Torino Marques (PSL) – Tribuna Notícias, da TV Tribuna/SBT –, para a Assembleia Legislativa; e Ted Conti (PSB) – ES2, da TV Gazeta/Globo –, para a Câmara dos Deputados. Nenhum deles também tinha alguma militância política, mas os telespectadores/eleitores lhes atribuíam alguma confiança, por estarem no cotidiano de suas casas pela tela da TV há muitos anos. Fabiano Contarato também era entrevistado frequente nos telejornais, por sua atuação como delegado, sobretudo nas pautas de crimes de trânsito. Mas quem era o tal do Marcos do Val?
BT – No texto você atribui diretamente a colegas jornalistas e emissoras locais de televisão não terem questionado as informações que apresentavam o candidato novato como um especialista em segurança pública. Essa sua postura pública pode ser o início de uma onda de leitura crítica acadêmica sobre o jornalismo praticado no Estado tipo chega de engabelação?
ER – Você que me conhece há muitos anos, sabe que pratico uma leitura crítica da imprensa desde o início da minha carreira, quando, uma semana depois de me formar, em 1990, me candidatei à Comissão de Ética do Sindicato dos Jornalistas. E depois que comecei a atuar como professor, isso só se aguçou. Essa é nossa prática comum no Observatório da Mídia, núcleo de pesquisa e ação do qual sou um dos coordenadores na Ufes.
Mas deixa eu tentar fundamentar um pouco isso. O sociólogo Pierre Bourdieu fez uma série de conferências, que acabaram reunidas no livro “Sobre a Televisão”, onde analisa de forma bem pertinente como funcionam os bastidores de um programa de televisão; que normalmente convida um “especialista” para explicar ou comentar algum tema específico. Ocorre que, como identificou Bourdieu, e realmente acontece, o tal “especialista” nem sempre é tão especialista assim. Basta que fale bem e siga as regras do timing da televisão. Não se questiona muito se a pessoa é a que tem a melhor qualificação para o assunto que trata; se falou bem uma vez, já vai para a agenda do jornalista como “A” fonte especializada, e passa a ser convidada para qualquer outra pauta do tema. E isso se passa em todas as áreas. Invés de convidar algum pesquisador da Universidade, que é referência nacional na sua área, com salário e/ou bolsa de verba pública para ser “O” especialista naquilo, muitos jornalistas optam por procurar o sujeito que “fala bem”, e sequer checam se aquelas qualificações que diz ter são confiáveis.
No caso específico do então cidadão Marcos do Val, desde quando começou a ser figurinha fácil na TV como comentarista na TV Gazeta/Globo, depois na Record News ES, ao que indica nem teve tanto a intenção de enganar ninguém. Quase tudo que apresenta na sua biografia e currículo parece estar correto. Atribuo aqui a responsabilidade é aos jornalistas e aos gestores das emissoras. Quanto ao senador, como cidadão brasileiro, com mais de 35 anos, se quiser, pode até ser candidato a Presidente da República, é direito dele.
Não estou aqui questionando os posicionamentos políticos/econômicos/ideológicos do senador – apesar de discordar de quase 100% deles –, minha posição nesta análise é a de um professor e pesquisador de Ética Jornalística. Então… Será que há cerca de 10 anos, quando começou a aparecer na mídia, não havia no Espírito Santo nenhum pesquisador em segurança pública para ser o convidado como especialista nos programas de TV? Não digo apenas da Universidade Federal (Ufes) – onde sei que há muitas pesquisas na área –; mas também da Universidade de Vila Velha (UVV), que oferece um mestrado em Segurança Pública; na Faculdade de Direito de Vitória (FDV), que tem uma especialização em Investigação Criminal e Segurança Pública; ou no Centro Universitário Faesa, que tem uma pós-graduação em Segurança Pública e Criminologia?
E nas forças públicas de segurança? Será quem não tem ninguém à altura com passagem pela Academia de Polícia Civil ou Militar do Espírito Santo? Um instrutor (ou ex) da Polícia Federal? Ou mesmo da Rodoviária Federal? Algum oficial da reserva do 38º Batalhão de Infantaria do Exército – onde o senador se orgulha de ter tido sua formação ao longo de cerca de UM ANO no Serviço Militar Obrigatório quando tinha 18 anos? Ou ainda alguém da Marinha ou dos Bombeiros? Sei lá… A fonte mais qualificada no estado era mesmo um professor de artes marciais, com faixa preta de Aikidô – detalhe, de 2º Dan, dos nove graus possíveis na maturidade da categoria?
E mais. Que em sua página oficial informa ter títulos de “Mestre Honoris Causa em Artes Marciais, pela FACEI, e Doutor Honoris Causa em Artes Marciais, pela Erich Fromm World University”, que ele diz no site ser na Flórida, apesar de o endereço da sede de ambas as “instituições” ser na Rua do Uruguay, 21, na periferia de Salvador, em cima da Farmácia Santana e entre a Cris Modas, a Vanessa Lorym Cabeleireira e uma quitanda sem nome? Em um guia de Salvador na internet a informação de que “A empresa Erich Fromm World University, que tem a razão social INSTITUTO ERICH FROMM DE EDUCACAO LTDA, está presente no segmento de Escolas e Cursos e foi fundada em 23/06/2020”. Tem alguma “desinformação” aí. Ou no site do senador ou nas páginas das instituições.
A foto datada de maio de 2019, retirada do Google Maps, mostra neste sobrado azul, as instalações da Faculdade Einstein (Facei) e da Erich Fromm World University.
É isso que chamei de “engambelação” naquele meu comentário que te motivou a esta entrevista. Eu gastei menos de três minutos na internet para colher estas informações. Será que meus ex-colegas de redações ou meus ex-alunos pensaram em checar isso? Chegaram a pensar em perguntar a alguém como se conquista um título de Doutor Honoris Causa – uma das mais importantes honrarias no mundo acadêmico – ou o que vem a ser esse tal de “Mestre Honoris Causa”? Sou professor há 26 anos e nunca ouvi falar disso. Ou pior, se os jornalistas sabiam disso tudo, e deixaram por isso mesmo.
Pelo que está nas páginas das empresas baianas de educação, há a oferta de cursos de pós-graduação em várias áreas, entre elas Artes Marciais, além de Astrologia, Parapsicologia, Terapias Holísticas, entre outras. Mas são cursos de pós-graduação/especialização, que têm como pré-requisito ter finalizando algum curso de graduação; o que não é o caso do senador Marcos do Val, que em sua página oficial informa ter escolaridade até o ensino médio.
Fico imaginando se tivesse sido criado o Ministério da Segurança Pública e o senador capixaba fosse convidado para assumir a pasta, como era cotado. Seria mais um ministro do atual Governo a ter que explicar informações inflacionadas em seu currículo.
BT – O vídeo vazado no qual o senador confessa amplamente sua participação no Gabinete Paralelo do Governo Bolsonaro foi praticamente ignorado por exemplo pela TV Gazeta/Globo. Como avalia isso?
ER – Há alguns bons anos a maior parte da imprensa capixaba atua em conivência com alguns políticos locais. Sobretudo, se tiverem ligação com quem tem ingerência sobre verbas públicas para anúncios nos veículos de comunicação. O que também se complementa a isso o fato de o senador ter tido apoio de 863.359 capixabas em 2018; foram 45% dos votos válidos; e ainda o fato de seu candidato à Presidência, do qual alega ter relação de proximidade, ter sido eleito no estado com 63% dos votos. Historicamente, grande parte da imprensa opera sob o mantra do “se há governo, sou a favor”, pois é de lá que vem boa parte do dinheiro.
Quanto ao fato de o senador ser ou não de algum gabinete paralelo, isso faz parte da coerência do que ele defende. Ninguém pode se dizer enganado. Da mesma forma que acho engraçado quando algum jornalista se diz surpreso com alguma ação (ou omissão) do presidente da República. Ele está simplesmente fazendo tudo aquilo que sempre pregou.
BT – As eleições de 2018 para o Senado no Espirito Santo enterraram as velhas lideranças e abriram espaço para a renovação. Os eleitores foram enganados no caso de Marcos Do Val?
ER – Havia quatro candidatos ao Senado claramente identificados com o discurso belicista do candidato à Presidência que saiu vitorioso: o delegado da Polícia Civil Fabiano Contarato (Rede) – que não apoia(va) o presidente, mas o fato de ser policial já o enquadrava no rol dos eleitores que apoiam a Bancada da Bala –; o instrutor de artes marciais Marcos do Val; ambos eleitos; o então senador Magno Malta (então PR, o novo PL), que acabou em terceiro lugar e não se reelegendo, ficando sem ministério no governo de seu grande aliado e sem nada – até voltar a cena em recente viagem internacional na comitiva presidencial –; e o Subtenente Assis, bombeiro militar, candidato pelo PSL, que chegou a ficar em quinto lugar, apesar de também ser completamente desconhecido. Da tal “velha política” ficaram de fora Magno Malta e Ricardo Ferraço (PSDB), em quarto lugar, que também tentava a reeleição. O problema é que a imprensa local ficou muito ligada na polarização nacional, não dando muita atenção à disputa local pelo Senado; assim, como os dois vencedores tinham o perfil da Bancada da Bala e Marcos do Val estava na coligação do governador eleito; entendo que ambos acabaram indo na marola.
Eles não enganaram ninguém. Apesar de muitos eleitores capixabas conservadores se dizerem hoje enganados, não pelo Marcos do Val, mas pelo Fabiano Contarato; pois dizem ter “descoberto” só após as eleições que era gay, apesar de ele não ter escondido – nem explicitado – isso na campanha.
BT- Qual deve ser o comportamento da imprensa capixaba para esclarecer os eleitores nas próximas eleições evitando novos equívocos?
ER – Algumas vezes, analisando a imprensa local, observo algo como um tipo de negação da subalternidade. Isso de ficar dando muito mais atenção à disputa nacional, tratando em segundo plano a corrida ao governo estadual, de vez em quando falando dos candidatos ao Senado, olhe lá algo sobre as candidaturas à Câmara dos Deputados e pouquíssimo sobre a capilaridade dos votos para a Assembleia Legislativa, só faz com que a população se distancie mais e mais das questões políticas.
Nosso estado representa 1,8% dos votos nacionais. É menos do que a margem de erro nas pesquisas. Lógico que temos que nos preocupar com quem vai ocupar a Presidência da República, mas a imprensa local precisa é fazer seu papel de mediação social focada no local.
Tive a oportunidade de estudar muito a imprensa no Nordeste nos anos que trabalhei na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e era facilmente compreensível de perceber o motivo de os políticos de estados menores do que o Espírito Santo terem muito mais expressão nacional, ocupando vários ministérios e cargos de destaque na Câmara e no Senado. Eles são muito conhecidos em seus estados, pois a imprensa local dá ampla cobertura a eles. E aqui? Qual a cobertura dada à bancada capixaba em Brasília? Quem são e que fazem (ou não) os três senadores? Como estão votando os 10 deputados? Apresentam Projetos de Lei? Publica-se pouco ou quase nada! Desafio os colegas jornalistas a listarem os nomes dos 13 parlamentares de nossa bancada. Vamos lá. Um exercício. Sem olhar no Google. É isso. Se como mediadores não cumprimos nosso papel para o avanço da democracia; como esperar uma sociedade melhor?
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Quando disse na entrevista que iria me ater à corresponsabilidade da imprensa devido à má apuração – intencional ou não –, foi porque já tratei recentemente da questão da estratégia comunicacional da mentira de alguns políticos em outros artigos: Meu Mentiroso Favorito, de novembro de 2019; Fake news, no passado, eram chamadas simplesmente de mentira , em junho de 2020; e Uma guerra incessante contra a desinformação, em outubro de 2020.
Mentir, na política, como dizia Platão, se for para o bem público, para um objetivo maior, é justificável ao governante; ou Maquiavel, que sugere que as vezes é preciso dissimular um pouco para se manter a virtude do príncipe; ou ainda, como disse há algumas semanas o maior referencial político do senador Marcos do Val: “Fake News faz parte das nossas vidas. Quem nunca contou uma mentirinha para a namorada?”. Então, tá tudo liberado!
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Edgard Rebouças é jornalista, professor da Ufes e coordenador do Observatório da Mídia: direitos humanos, políticas, sistemas e transparência.