A mais recente temporada de caça à imprensa começou na quarta-feira (3/8), quando o presidente Lula foi à terra natal e devidamente energizado pelos conterrâneos, num inflamado improviso, acusou a imprensa de estar crucificando inocentes. O tom da catilinária e, sobretudo, a ameaça que deixou pendurada no ar fez a temperatura subir alguns graus.
E como estas coisas não acontecem por acaso, no fim de semana o Diretório Nacional do PT foi na onda e emitiu nota ainda mais preocupante (afinal, trata-se do partido do governo). Denunciou as ‘estratégias oportunistas da direita’ e o ‘processo de difamação ora em curso na imprensa’.
A diatribe não foi acidental, estava encaixada no raciocínio e na lógica de um texto debatido exaustivamente pelas várias correntes do partido:
Não somos ingênuos a ponto de pensar que todas as denúncias que circulam pela imprensa visam combater a corrupção. Combinada com essa sadia possibilidade democrática, também está em curso um processo difamatório contra a totalidade do PT e suas lideranças e contra o governo e seus representantes, que visa aniquilá-lo como via democrática para o resgate das esperanças populares. Este processo, apoiado em nossos erros, pretende retirar o partido da cena pública e inviabilizar esta parte da esquerda brasileira que construiu o Partido dos Trabalhadores. [Trecho da Resolução do Diretório Nacional do PT reproduzida no Estado de S.Paulo, domingo, 7/8, pág. A-8]
Coube ao senador Aloizio Mercadante, dia seguinte (8/8), na ‘Entrevista da 2ª’, da Folha de S.Paulo (pág. A-12) avançar um pouco mais:
‘A imprensa vive da criminalização das campanhas. Não abre espaço para uma discussão qualificada, emergencial e indispensável no Brasil. (…) A concorrência que se estabelece nas Redações leva a que matérias não sejam apuradas devidamente. Nem sempre o direito à defesa é respeitado. Reputações ficam definitivamente comprometidas.’
Desastre político
No intervalo de cinco dias, três ataques com diferentes calibres contra a imprensa. Três instâncias do mesmo grupo político descarregam suas baterias contra uma instituição em grande parte responsável pela sua ascensão ao poder.
Isso não pode ser esquecido: o PT serviu-se da imprensa tanto em sua fase ‘revolucionária’ quanto na fase pequeno-burguesa, marqueteira. Sua vitória em 2002 não seria possível se não contasse com a simpatia de um segmento importante da imprensa local e o fascínio da mídia internacional. Sem essa generosa aliança o presidente Lula não conseguiria alcançar o patamar a que chegou.
O ‘fenômeno Lula’ é um fenômeno midiático: depois de três derrotas conseguiu criar um conjunto de expectativas brilhantemente aproveitadas durante a campanha, posse e primeiro ano de mandato. A reversão não poderia ser diferente: a queda livre decorre da fadiga dos recursos promocionais – badalação apenas não viabiliza o Fome Zero.
Aqueles que pavimentaram o triunfal percurso de Lula até a rampa do Planalto são os seus mais exigentes críticos. Não poderia ser diferente, sentem-se lesados. É isso que o presidente da República, o Diretório Nacional (ainda orquestrado pelo ex-ministro José Dirceu) e o senador Aloizio Mercadante precisariam compreender antes de empreender esta ação kamikaze contra a imprensa.
O fosso começou a ser cavado quando um gênio palaciano inventou que o governo deveria encampar a criação do Conselho Federal de Jornalismo.
Quando o presidente Lula – com aquela falta de serenidade disfarçada em brincadeira que o caracteriza – chamou de covardes os jornalistas que se recusavam a apoiar a proposta de criação do CFJ, quebrou-se o encanto.A atual sucessão de denúncias ‘colou’ nos meios de comunicação de forma tão espontânea porque nesses três anos nem o governo nem o partido do governo conseguiram satisfazer minimamente as expectativas por eles criadas.
O presidente e sua equipe de conselheiros não perceberam que o abuso das metáforas criaria fatalmente um vazio de substância. Metáfora é mero recurso retórico, comparação simplificada. De simplificação em simplificação, chegou ao nada. Zero absoluto. O relativo sucesso no plano econômico ainda é imaterial, abstrato, porque a administração não conseguiu traduzi-lo de forma concreta na esfera cotidiana. Qualquer fenômeno midiático converte-se rapidamente em desastre político se não contar com um suporte mínimo de gestão.
Opção pela passividade
O presidente deblatera contra a imprensa mas não se deu conta de que se a imprensa reproduzisse com fidelidade o que se passa nos recentes périplos sua imagem estaria ainda mais desgastada.
As cargas contra a difamação, a ‘criminalização’ e o denuncismo destes três pronunciamentos antimídia são injustas. O governo e o seu partido vêm punindo sistematicamente todos os acusados e com tal presteza que só favorece as suspeitas que há muito mais para investigar e punir.
A mídia tem errado (a última feriu o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo), mas a margem de erro, embora lamentável, é insignificante se comparada com o escabroso quadro que o próprio governo vai revelando – voluntária ou involuntariamente.
Não é a mídia quem difama, ela simplesmente reproduz os depoimentos, testemunhos, investigações oficiais e seus resultados estarrecedores. Desde o início quem está comandando o processo é o próprio governo. O vídeo da propina que deslanchou a sucessão de escândalos, e entregue à Veja, foi produzido pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin) que, aparentemente, fazia parte do governo. Se a mídia investigasse mais, a CPI certamente estaria mais adiantada em matéria de resultados.
O furor que se nota em certos veículos (caso da mesma Veja e, sobretudo, da sua última edição) é opinativo e não investigativo. Ao contrário da velha Tribuna da Imprensa dos tempos de Carlos Lacerda, não produz fatos. No máximo estimula percepções que um governo operante e ágil já teria desativado.
Para preservar a figura do presidente, o grosso da grande imprensa optou justamente pela passividade: contenta-se em reproduzir e sintetizar as revelações despejadas nos fóruns da mídia eletrônica ao longo da semana, algumas horas por dia. O Brasil entrou com o pé direito na era do jornalismo all-news graças ao farto material que o governo e os partidos aliados gratuitamente disponibilizam.
Erro crasso
Talvez o senador Mercadante tenha acertado ao dizer que a imprensa ‘não abre espaço para uma discussão qualificada, emergencial e indispensável’.
O clima de espetáculo que tanto agradava à entourage palaciana agora funciona na direção contrária. É mínima a distância do circo simpático ao circo antipático. A grande reflexão reclamada pelo senador paulista sequer ocorre no seio de um partido famoso pela legião de intelectuais-militantes. A nota do Diretório Nacional aprovada no sábado (6/8) é lamentável, infantil, areia nos olhos da plebe ignara. Os intelectuais acamparam em outro lugar. Não querem saber de cuecas recheadas de dólares nem de orgias em hotéis de cinco estrelas. Muito menos de Land Rovers. O presidente fala mal das elites, no plural, mas perdeu a mais importante delas – a elite intelectual. Jornalistas, inclusive.
A grande imprensa só dispõe de espaço no primeiro domingo de cada mês, quando avulta o número de anúncios e o espaço editorial – caso do último domingo (7/8), reforçado pela proximidade do Dia dos Pais. E a pequena imprensa (onde esta ‘discussão qualificada’ deveria se processar) foi cooptada pelas verbas oficiais, esqueceu o seu papel e quando descobriu era tarde demais.
O governo e o Campo Majoritário do PT imaginam que a tensão, o paroxismo e as situações-limite podem aplacar frustrações. Erro crasso, só as aumentam. Ao invés de confrontar a imprensa numa guerrilha antecipadamente perdida, o melhor seria insuflar suas responsabilidades, reconhecer seus atributos. No canto do ringue, o boxeador nocauteado não deveria atacar o juiz.