Se, durante a fase heróica dos movimentos de resistência ligados à Segunda Revolução Industrial, a luta operária, indígena, feminina, negra, homoerótica e tantas outras, lançavam suas barricadas nas praças públicas, atraindo as forças repressivas dos estados a serviço dos interesses privados e, assim, agitavam o ‘ordenado’ (contribuindo para democratizar, dilatando justiças econômicas, sociais, culturais, cognitivas, antropológicas) cotidiano fascista da sociedade burguesa, com sua onipresença de mais-valia, hoje, por sua vez, a praça pública é midiática e, ainda, antes de tudo, televisiva.
Não é circunstancial, nesse sentido, que as grandes redes de TV do planeta sejam clones umas das outras e sirvam aos interesses das multinacionais e dos governos colonizadores, contribuindo, decididamente, para moldar comportamentos, hábitos, desejos e subjetividades da maioria da população planetária.
Diante desse oligopólio planetário, com ramificações, praticamente, em todos os países, falar em liberdade de expressão e de imprensa é, senão ingenuidade, pura má-fé.
Os oligopólios midiáticos são ramificações, afinal, do monopólio do dinheiro e, portanto, da plutocracia mundial. Seus controladores são, certamente, os mais corruptos e mafiosos empresários do mundo. E se o capitalismo contemporâneo é o do desastre, o da corporocracia militar-midiático-industrial-engenheiro-construtor, sendo o Iraque o laboratório de suas empreitadas, sua lógica é a da destruição de toda forma de soberania, para implantar o seu próprio zoológico de interesses financeiros, conquistados à base de chantagem, de intimidação, de guerra, que é também midiática, que é também televisiva.
Antropocentrismo inferioriza
As grandes redes de televisão do planeta são a versão pura e simples dos interesses de 1 bilhão de habitantes da terra – e muito especialmente de uma fração mínima desse 1 bilhão – e estão em guerra aberta contra a liberdade de expressão dos outros 5,5 bilhões de habitantes humanos do planeta – que conta, hoje, com 6,5 bilhões de pessoas.
O que elas chamam de liberdade de expressão, nesse sentido, cinicamente pode ser interpretado como a liberdade de expressão de uma esmagadora minoria branca, masculina, plutocêntrica – essa mesma que é a protagonista da crise ecológica, que impõe um stress gigantesco sobre a biodiversidade, para alimentar seu egoísta consumo de luxo.
Portanto, liberdade de expressão, nesse contexto oligopolizado, de coporocracia midiática, não tem outro nome: é criminosa censura contra a dignidade da vida humana e não humana; é monocultivo de luxo, de exibicionismo, de arrogância, de racismo, sexismo, poluindo e sufocando o direito de expressão, de ser e de estar, das biodiversidades, as do plano humano e também as da flora e da fauna, e tudo ao mesmo tempo agora, já que o antropocentrismo, nossa arrogância de nos acharmos religiosa e racionalmente superiores, inferioriza, subjuga, oprime e sacrifica todas as vidas, e tanto mais quanto mais não forem vidas humanas reunidas no pacote de serem brancas, masculinas, heterossexual, ricas, tecnocráticas, cristãs.
Oligopólio midiático planetário
Se temos sido absolutamente omissos diante de tanta e escandalosa injustiça – fazemos parte do 1 bilhão? –, temos exemplos corajosos para nos servir como norte, para, enfim, nos dizer, com exemplaridade, que é possível dizer não à corporocracia midiática – e a todas as outras –, que é possível um outro mundo.
Esse exemplo tem nome próprio: a Venezuela de Hugo Chávez Frias. No próximo dia 28 deste mês, após o término do período de concessão da RCTV, Rádio Caracas de Televisão, o governo da Venezuela não vai mais, legitimamente, renovar a concessão de seu espectro.
Além de ter participado ativamente do golpe contra o presidente Hugo Chávez, em abril de 2002, a RCTV é parte do oligopólio midiático planetário e existe para censurar, e não para promover a liberdade de expressão. Como está previsto na Constituição venezuelana, após o término do período de concessão, o Estado pode ou não renovar a continuidade de sua transmissão. Juridicamente, soberanamente e também em nome da liberdade de expressão verdadeira, o governo venezuelano resolve não mais renovar, eis o fato.
A opção de Chávez
Por causa disso mesmo, entidades como OEA, Organização dos Estados Americanos, Sociedade Latino-americana de Imprensa e tantas outras, têm acusado o governo de Hugo Chávez de censura, o mesmo governo que tem apoiado, inclusive com recursos financeiros e suporte técnico, a abertura de mais de 400 meios alternativos, impressos e audivisuais, de comunicação; que tem criado redes públicas de TV como a Telesur e a Vive Tevê, que são TVs que contemplam a liberdade de expressão daqueles que nunca a tiveram; que têm editado o ponto de vista do pobre, do índio, do negro, do latino-americano, da mulher, da África, dos excluídos e sem voz.
Com a proximidade do dia do término da concessão de RCTV, a pressão das oligarquias venezuelanas e planetárias tem aumentado, de modo que não é de todo improvável a tentativa de um novo golpe de Estado na Venezuela.
Cansado de não tomar partido, de me acantonar, protestando entre poucos, este artigo é um manifesto a favor da soberania do governo venezuelano; a favor, enfim, de seu legítimo e corajoso gesto de não mais renovar a concessão da RCTV, colocando, em seu lugar, no lugar desse espectro, ou desse fantasma oligárquico, a experiência insubmissa e democrática de deixá-lo a cargo das mais diversas organizações sociais.
Assumindo partido de uma sociedade planetária que garanta, de fato, a liberdade de expressão das maiorias – e não há outro jeito sem acabar com os oligopólios midiáticos –, pergunto-me: para quem o Estado de direito, fazendo jus à sua soberania, deve conceder um sinal aberto de televisão, para o oligopólio ou para a sociedade civil?
É simplesmente a segunda opção que o presidente Hugo Chávez Frias, da Venezuela, tomou.
É ditador por isso?
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Poeta, escritor e professor de Teoria da Literatura na Universidade Federal do Espírito Santo