Este ensaio foi escrito logo depois do debate promovido pela Bandeirantes entre 7 dos 14 candidatos a prefeito de São Paulo, iniciado na noite de quinta (5/8) e encerrado na madrugada de sexta (6). Confesso que a raiva me moveu a escrevê-lo. Não agüentei a excessiva autopromoção da emissora, constatada logo após o termino do evento. Mas essa fúria me ajudou a enxergar o grande fim/objetivo de toda a promoção, a saber, a composição de mais um produto da indústria da consciência, tendo como carros-chefe a fôrma e a forma estética e por instrumento de enganação o apelo à democracia. Mesma ânsia que me fez perceber que quem deve mais aparecer e falar no período eleitoral não é o candidato, mas, sim, o eleitor.
A Bandeirantes repetiu sua maneira de agir no que diz respeito aos debates. Adotou receita, usou padrão, criou modelo, mergulhou no que crê estar dando certo. Ou seja, ao final do evento colocou seus repórteres na cola dos debatedores para responder à pergunta-chave para o embelezamento da imagem da emissora: ‘O que o senhor (a) achou do debate?’ Todos foram perguntados, mas ninguém foi ouvido, pois a meta era que simplesmente falassem a respeito do trabalho desenvolvido pela empresa em prol da democracia no processo eleitoral, quer dizer, não importava realmente que avaliação estava fazendo o político; o importante era que falasse, entrasse no jogo. Foi assim dois anos atrás, em debate entre candidatos à presidência.
Erundina nem terminou de falar e já teve o microfone retirado de seu raio de profusão de voz pelo repórter para que outro postulante continuasse o giro, não quebrasse a corrente, mantivesse o ritmo da linha de produção, não atrapalhasse o tempo cronometrado da atração. Bourdieu (1997) diz que o tempo é um dos elementos invisíveis de censura na TV, visto que nela geralmente se fala sobre o que se é indagado e se responde conforme o relógio que compõe a mentalidade-índice-de-audiência.
Declarações de amor próprio
Em seguida a esse festival inutilidade social (oposição à propalada responsabilidade social que o jornalismo deve proporcionar) teve início o segundo tempo de Narciso. Um repórter ressaltou por duas vezes o fato de José Serra, candidato do PSDB, e de Suplicy, senador do PT, terem conversado animadamente por cinco minutos no pós-debate. O petista ainda foi entrevistado, tentou explicar o tipo de relacionamento com o tucano, mas, como Erundina, não pôde concluir.
Logo houve um corte para a redação, onde Roberto Cabrini conduzia ao vivo o Jornal da Noite, tendo como parceiro por pelo menos 10 minutos seguidos o diretor de jornalismo da emissora, Fernando Mitre, que já havia aparecido após o evento, obviamente para enaltecer o esforço da firma. Em 2002, em debate com os postulantes à presidência, num domingo, ele também figurou entre os entrevistados. Realmente uma ‘marca bandeirante’. Desbravadora? Nem de longe.
Ainda se veicularam duas matérias sobre o debate, sendo que uma tratou de descrever a chegada dos candidatos à emissora e a outra de como eles se portaram nos bastidores. Usou-se por metodologia a típica descritividade jornalística (jornalismo de informação) com algumas ‘pitadas de sentido’, como o fato de ter caracterizado Enéas, presidente nacional do Prona, pelo papel social de ‘chefe’ (do partido).
Não bastassem as rasgadas declarações de amor próprio, o empenho mantido em voga foi acrescido da avaliação consensual de que o debate foi realmente produtivo para a democracia brasileira, convicção alicerçada pela conduta respeitável dos candidatos, que preferiram o caminho das propostas ao dos ataques pessoais. Mitre chegou a dizer que ‘jamais tinha acompanhado um debate com tanto conteúdo’.
Sem indagações
‘Como ele enxergou isso, meu pai?’, me perguntei, se apenas o que vi foram candidatos atacando ferozmente a administração de Marta Suplicy, do PT, afirmando, contudo sem provas consistentes ou raciocínios contundentes, que a atual prefeita está usando a ‘máquina’ para se reeleger, realizando várias construções em ano de pleito, remunerando consideravelmente seu conjunto de admiradores. Também só vi a ocupante do cargo a usar a tática de quem realmente incorporou o discurso burocrático do poder, ou seja, a de relatar os serviços feitos e comparar a cidade de hoje à da gestão anterior. Tudo muito previsível, porque, na maior parte das vezes, o ataque cabe a quem não está integrado ao comando e a defesa a quem zela do patrimônio administrado (alheio) e do próprio (sua moral, sua história política).
E, sinceramente, não notei proposições de nenhum dos proponentes ao cargo. O que percebi foi, no máximo, a enumeração de algumas ações que serão cumpridas, caso se chegue ao topo. Serra falou, por exemplo, do aumento de 4 para 5 horas de aula por dia nas escolas públicas e disse que vai melhorar o SUS. Maluf mencionou que vai ampliar o número de crianças nos colégios, retomará o PAS na saúde, que implementará maior volume de tecnologia nos ambientes escolar e de trabalho e que terminará grandes obras rodoviárias. Ciro Moura, do PTC, contou que quer ser o prefeito da habitação, pois a construção civil é o ramo que mais emprega pessoas. Paulinho (da Força Sindical), do PDT, se concentrou no atendimento à periferia e na ampliação do sistema de transporte coletivo. Marta afirmou que vai edificar mais 24 Céus (na educação) e pediu mais quatro anos à população, desta vez para se dedicar à saúde. Erundina, do PSB, ressaltou a necessidade do fortalecimento do Programa Saúde da Família. Havanir, do Prona, afirmou que vai restabelecer o modelo tradicional de educação, para garantir uma verdadeira alfabetização, e prometeu o fim das filas nos postos médicos.
Em momento algum um deles sequer mostrou, ponto a ponto, como emplacará seus projetos. Em nenhum instante do chamado debate os candidatos se indagaram acerca da questão da reforma agrária, de como vão, sistematicamente, gerar emprego e renda na maior metrópole do país, de que forma distribuirão espaços no centro da cidade, tomada pelo trabalho informal, pelos menores abandonados, pelos mendigos, o que farão para lidar de frente com a raiz do mal falado tráfico de drogas ilícitas, porém tão menos parasita que a elite e a classe média ultracapitalistas que investem nas ações contrárias à pichação do status quo (autodefesa, dificuldade de diminuir a individualidade e abandonar a mente que ambiciona sucesso, a mentalidade vencedora).
Voz silenciosa
Meia hora depois do debate já entendia como a Band conseguia se coroar e se sentir bem na pose de majestosa. É que o ângulo que permitia essa visão prima pela estética e pela técnica modelar, não pela reflexão, pela autocrítica, pelo entendimento de que o mundo, esse globo multiforme, por isto informe, não compartilha das regras que lhe tentam pôr goela abaixo os denominados condutores do processo, neste caso, o jornalístico, sem esquecer, entretanto, que os aspectos econômico (principalmente o índice de audiência) e político (a proximidade da mídia convencional aos interesses defendidos pelo estado e por famílias influentes) são fundamentais para a composição dos momentos de crise e de apoteose.
Mitre chegou a dizer que a Bandeirantes atingiu ‘excelência na forma’, expressando a seguir a ressalva de que não houve perfeição, mas que quase se chegou a ela. Para corroborar, comparou os debates de 15 anos atrás, quando, segundo ele, os postulantes quase se estapeavam, não deixavam que o oponente se manifestasse, como os de agora, entre os quais impera o reino das normas, as que estabelecem o tempo de pergunta, de resposta, a ordem de indagação, o que significa ataque pessoal e quando o direito de defesa deve ser exercido. Regras, enfim, que transformam o evento num ato de nota única, enfadonho ainda que dividido em cinco blocos.
Cansativo porque permite e provoca a repetição de argumentos, a utilização do espaço para pergunta como trampolim para uma ratificação da primeira fala, o espaço de resposta como caminho para um verdadeiro rodeio ou mergulho em assunto distante do posto. E, no fim, uma série de movimentos circulares que não saem da superficialidade.
E como se ouviu falar de longas filas em postos médicos, descaso com a educação fundamental, altos índices de desemprego e violência, mas, ao contrário, como permaneceu silenciosa a voz do questionamento, da coerência, da incisividade, do interesse público, do espírito coletivo (‘Candidata, a senhora falou, falou, mas não respondeu a minha pergunta. Responda-a!’; ‘Candidato, o senhor só está prometendo. Mostre como fará tudo isso!’; ‘O senhor me acusou. Prove agora o que disse!’; ‘Senhora, acha mesmo que o primeiro passo é combater o tráfico? Sabe de onde ele vem, por que se origina?’; ‘Acha mesmo que alimentando os planos privados de saúde estará contribuindo para a melhoria da qualidade de vida da população de São Paulo?’; ‘Acredita, senhora, que políticas reparatórias vão assegurar em médio prazo, e mesmo em longo prazo, um sistema social mais justo?’)
Realidade e desequilíbrio
Nós, jornalistas, não sabemos quem é a população, quem é o povo, o que são populares, o que significa massa (se é que isto existe), se há mesmo no mundo algo chamado receptor, como vivem e o que sentem as pessoas. Estamos apartados do contato, divididos pelas paredes das redações, atraídos demais pela tecnologia que torna cada vez mais antiquada a comunicação interpessoal, envolvidos sobremaneira pelo balanço eletrônico da indústria de produção em série. Tornamo-nos pauta a pauta mais burocráticos, menos interessados em desdobramentos, menos à vontade em locais que não têm a ver com os que na maior parte do tempo freqüentamos.
Daí, favela vira símbolo de tráfico, repressão, sinônimo de necessidade, e assim continuamos a reproduzir o modelo embalável das eleições e o trote da corrida de cavalos (vigilância quanto às pesquisas de intenção de voto). Paralelamente a isso corre a percepção de que nós, jornalistas, estamos nos tornando dispensáveis, muitas vezes um atrapalho, simuladores de realidade, encurtadores do campo de visão, manutensores das divisões sociais.
Por isso pensei num inverso. Em vez de um debate com destaque para o espetáculo da previsibilidade, das artimanhas, da demagogia/do discurso populista, um contato mais real, próximo, sem que a TV seja a matriz de transmissão. Falo dum encontro entre candidatos e comunidade num ginásio ou num estádio de futebol. Falo de 3 mil, 5 mil, 10 mil pessoas acompanhando uma tentativa de conversa. Primeiro bloco: as boas-vindas e a indicação de 3 minutos para cada postulante desenvolver uma apresentação de projetos ou saudar o pessoal. Segundo e último (cerca de 1h30): perguntas da turma aos concorrentes; indagações quaisquer a qualquer postulante, sem que haja preocupação em equilibrar o número de perguntas para cada um, afinal, a realidade é permeada pelo desequilíbrio, e não se pode disfarçá-lo.
O contato ao vivo
Veja que o debate entre os candidatos não se dará diretamente, visto que o principal não é que um indague ao outro, mas que a comunidade o faça. Outra explicação: ao responder a uma questão, será possível elogiar, maltratar, acrescer, denunciar quem está na mesa. Veja também que não se trata de um evento que tem na proximidade do contato físico sua fundamental diferença em relação ao debate televisivo, que distancia pela existência da tecnologia de massa/de profusão. Ou seja, o fundamental é que as pessoas que estão no local participem do ato, perguntando, contra-perguntando, vaiando, batendo tambor, aplaudindo, xingando, assoviando, jogando pipoca ou saquinho com cerveja.
O fundamental não é que o contato seja transmitido pela TV ou por qualquer outro meio de comunicação, portanto, não se objetiva boa audiência. As repercussões serão fermentadas dentro daquele meio vivo, daquele caldeirão, daquilo que se aproxima um pouco mais do que a Band chama de democracia.
‘Um debate desses vai resolver as coisas?’, pode perguntar alguém. ‘Resolver o quê?’, devolva. Diga que esse é um ato, um algo que pode ser bem mais eficiente do que o modo burocrático, altamente conservador de se discutir política. E diga ainda que se perde muito tempo em tentar encontrar soluções. Franza a testa e sorria, dizendo que muito mais faz quem atua com o funcionamento caótico da vida.
O contato ao vivo envolvendo centenas de pessoas e vários candidatos ao mesmo tempo pode ser abraçado como prática pelos grêmios estudantis, as associações de empregados, os conjuntos de sindicatos, as comunidades religiosas etc. Uma forma interessante de tirar das entidades patronais e das megaempresas o hábito exclusivo de levar para seu terreno os que disputam um lugar de representatividade popular.
******
Jornalista em Cuiabá