Depois de definir como patifes os jornalistas que não trabalham para ele e de processar os diários La Repubblica e L´Unità, Silvio Berlusconi acaba de abrir fogo contra a imprensa estrangeira. Na qual também figuramos, modestamente, pois costumamos falar do premier italiano como caricatura ambulante. Claro está que Berlusconi se refere a publicações bem mais ilustres: The Economist, Times, Financial Times, New York Times, Wall Street Journal, El País, e outras de alto porte.
Este é apenas um capítulo de uma ‘questão midiática’ que se alastra pelo mundo, provocada por relações conflituosas entre governos e mídia. Barack Obama nada tem a compartilhar com Berlusconi, mas não deixa de ter seu papel no enredo, tanto mais de destaque por ser ele quem é. O presidente dos Estados Unidos toma em relação à Fox News uma atitude inédita, capaz de tornar-se exemplar aos olhos de outros governantes.
Agredido (o verbo cabe) diariamente pelo noticiário mais reacionário do país, frequentemente com recurso a invencionices, falsidades e mentiras, Obama anuncia sua decisão de passar a considerar a Fox News como partido político igual à oposição republicana, o que, na prática, implica portas fechadas para os profissionais da emissora, mais um braço do poder de Rupert Murdoch. É hora do espanto?
Os Estados Unidos orgulham-se de uma tradição democrática antiga, garantida inclusive pela atuação de uma imprensa livre como poucas. Não faltará quem passe a clamar, não somente em terra americana, contra o assalto à liberdade de expressão. Por ora, surpreende a falta de reação dos jornalões nativos. Obama é, porém, Obama.
Colega e patrão
A drástica medida reveste-se, de todo modo, de uma peculiaridade interessante. Ou inquietante? A depender de quem a encara. Por exemplo, o presidente Lula, que como Obama não apresenta a mais pálida semelhança com Berlusconi, teve a mídia nativa alinhada contra ele desde a campanha eleitoral de 2002, salvo raras exceções.
Concentram-se a seu desfavor editorialistas, colunistas, editores, repórteres. Exército a serviço de um partido político, compacto no momento de desfechar ofensivas. A arma empregada nem sempre foi a mera opinião, à qual cada um tem direito. Pelo contrário, também no caso houve invencionices, falsidades e mentiras. Sem falar das omissões e das interpretações desprovidas de apoio na verdade factual.
Poderia o governo Lula enxergar um exemplo válido no revide de Obama? Sabemos que o nosso presidente jamais tomaria a decisão do colega americano, mesmo se concordasse com ela entre o fígado e a alma. Quem sabe haja outros graúdos globais dispostos a se comoverem. Diferente foi a saída do casal Kirchner. Levaram o Parlamento argentino a aprovar uma lei pela qual se impede o monopólio midiático por parte de quem quer que seja. Ninguém pode ser dono de tudo.
Aqui o alvo flagrante é o grupo Clarín, ferrenho opositor, e cujo monopólio é discutido há mais de 30 anos. O casal cuida dos seus interesses, está claro, mas a lei, similar a outras em vigor em vários países do chamado Primeiro Mundo, é altamente democrática. Inútil seria esperá-la do Congresso brasileiro, desinteressado em uma democracia, digamos assim, ortodoxa. Mais cômoda a democracia sem povo, ou, por outra, a do privilégio. Aí ficamos em família.
Os jornalistas brasileiros teriam de se empenhar por uma lei similar, garantia de um efetivo pluralismo, em proveito de sua profissão e das suas chances de praticá-la em situação de verdadeira liberdade. Ocorre ser este, no entanto, o país onde os profissionais chamam o patrão de colega e o sindicato lhes fornece carteirinha. Não conheço outro onde a mídia feche de um lado só, desde o instante que minha memória alcança. Talvez Obama dissesse: eis aí um partido político. Mais consistente, mais sólido, mais determinado, aliás, de quantos no Brasil se apresentam como tais.
Useira e vezeira
Algo me intriga e me sugere falar ainda da Itália, um país que teria de envergonhar-se ao eleger Berlusconi. O jornal Corriere della Sera revelou em primeira mão as mais recentes aventuras donjuanescas do premier, patrocinadas por um empresário corrupto. Furo de reportagem, como se diz na linguagem das redações. O resto da mídia foi atrás e deu amplo seguimento ao assunto.
Que aconteceria no Brasil? Sempre que CartaCapital antecipou-se na divulgação de informações exclusivas e relevantes contou com o silêncio imponente da margem oposta. Muitas vezes, publicamos hoje o que o resto da mídia apresenta como novidade meses e até anos depois. Esqueçamos, porém, as ofensas sofridas em quinze anos de vida, acusados desde 2003 de governistas, porque, a despeito de amiúde crítica do governo, CartaCapital empenhou-se em frequentar a verdade factual.
Trato, tão somente, de aproveitar a oportunidade para informar que, no momento oportuno, definiremos a nossa escolha em relação ao pleito do ano próximo, como, de resto, se dá em países democráticos dotados de uma imprensa livre, ainda que sujeita, eventualmente, às pressões do poder. Enquanto isso, o resto da nossa mídia fingirá, com a desfaçatez useira e sua inesgotável aposta no alheamento popular, equilíbrio, isenção, equidistância.
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Jornalista, diretor de Redação da CartaCapital