A imprensa paulistana é serrista? Mas há pouco mais de dois anos não era acusada de petista? Significa que a imprensa mudou de mão ou é sinal de que o eleitorado aprendeu a formar juízos próprios? Neste caso, como explicar a boa avaliação de Marta Suplicy como prefeita de São Paulo e o seu alto índice de rejeição como candidata?
A mídia converteu-se em bode expiatório e saco de pancadas dos perdedores e dos incompetentes. Também dos corruptos. O casal Garotinho, em Campos (RJ), no dia da eleição, chamou os repórteres de ‘canalhas’. Ao vivo.
Esta é a versão popular-fascistóide da crítica da mídia. Há outras modalidades, mais ‘científicas’, não menos enfezadas, capazes de perverter uma das ferramentas mais avançadas do processo democrático e colocá-la ao lado dos mais rústicos tacapes da guerrilha ideológica. No pleito paulistano, a cobertura jornalística foi menos decisiva do que a comunicação política. Isto precisa ser devidamente enfatizado e clarificado. Só assim evita-se a cantilena de que a imprensa está na origem de todos os males.
Nos jornais de segunda e terça-feira (1 e 2/11) apareceram dúzias de hipóteses, teses e teorias para explicar os resultados da eleição na maior cidade do país, onde o vitorioso impôs-se diante da concorrente mesmo sem apresentar um programa concreto de governo.
Feministas denunciaram o machismo, psicanalistas examinaram a personalidade da candidata derrotada, estilistas manifestaram-se sobre o seu guarda-roupa, politólogos discutiram as culpas do partido ou a pressão exercida pelo governo federal, opinionistas tiraram opiniões da algibeira – um festival analítico como raramente se viu.
Derrotas são mais pródigas em interpretações do que os triunfos. Por solidariedade com os vencidos ou, ao contrário, por adesão aos vencedores, a preferência dos analistas vai para as razões da derrota. Estranho que numa sociedade fascinada pelo sucesso e pelos manuais que ensinam a vencer desafios pouca atenção tenha sido dada aos motivos da vitória de José Serra.
Soluções frugais
Uma pequena matéria no Estado de S.Paulo (1/11, pág. A-6) ofereceu algumas indicações sobre os fatores que permitiram a surpreendente reviravolta desse candidato derrotado há dois anos, e que retornou com uma expressiva vitória no município politicamente mais sofisticado do país sem precisar recorrer a qualquer estalo ou estrondo publicitário.
A comunicação de José Serra foi na direção contrária do marketing exacerbado e apelativo, hoje paradigma nos grandes pleitos. Seu comercial mais lembrado foi veiculado no surradíssimo rádio – uma musiquinha de acento nordestino repetindo sempre o refrão ‘Dona Marta, com todo o respeito etc., etc.’ – e seguia-se a mensagem do dia, engraçada, atual, contundente. Colou: a candidata não escondeu a sua irritação com as tiradas musicais.
Coisa de publicitários? Coisa de jornalistas: a empresa que ajudou José Serra a ganhar é a quase desconhecida GW, de propriedade de quatro experimentados homens de imprensa [leia a matéria do Estado na rubrica Entre Aspas desta edição].
Não adiantam as alegações de que o episódio policial no qual se envolveu o marqueteiro Duda Mendonça tenha sido decisivo para a derrota da sua cliente. Quando a polícia invadiu aquela rinha de galos na periferia do Rio, Marta já estava condenada. Justamente por causa do seu marketing. Quem andou de salto alto ao longo da campanha não foi a candidata, mas aqueles que deveriam manter-se invisíveis e sóbrios.
O eleitor percebeu a campanha milionária da prefeita (com o tempo essas coisas ficam visíveis para qualquer mortal). E, por oposição, o eleitor entregou-se às mensagens que valorizavam o adversário: o careca grave, tímido, raras vezes sorridente, com aquele cabeção de menino-prodígio e olhar triste de criança pobre.
Enquanto os assessores da prefeita preferiram apresentar a candidata da periferia de forma deslumbrante, os estrategistas do oponente (acusado de ser apoiado pelos ricos) preferiram as soluções frugais, despojadas e humanas. Serra venceu porque deixaram que aparecesse como ‘o professor boa-praça’.
Empatia fugaz
Ao contrário do que se imagina nas rodas dos comunicólogos, as mensagens do horário eleitoral, em função da sua elaboração e reiteração, têm mais poder de penetração do que os resíduos da cobertura jornalística. A tal monitoração ‘científica’ das matérias favoráveis e desfavoráveis publicadas na mídia paulistana é pura elucubração acadêmica de quem há muito tempo não pisa numa redação. Cometeram-se erros, mas é leviano acusar a imprensa de manipuladora. Já foi, dificilmente voltará a sê-lo.
Um destes erros foi o de passar a impressão para o público de que o bom debate televisivo é aquele em que os contendores se digladiam e se matam. Quando discutiam questões técnicas – que interessam vitalmente o eleitor – o confronto era desqualificado como ‘frio’, ‘desinteressante’.
Outro erro da imprensa foi o de submeter-se às agendas e padrões dos marqueteiros. A reportagem não conseguiu impor novos formatos de cobertura eleitoral. Nenhum dos candidatos foi levado à rua para mostrar concretamente suas idéias sobre os novos túneis, as vias rápidas, os engarrafamentos nas transversais, o bilhete único, a coleta do lixo, a iluminação pública etc. Tudo ficou restrito ao nível da ‘declaração’ e, em seguida, da inevitável réplica sem que fossem oferecidas ao eleitor as propostas e explicações de cada um.
Esta maneira burocrática de cobrir uma eleição municipal empurrou o confronto para o plano das ferroadas. E então a fofoca dominou. Em certos momentos, parecia briga de comadres à qual a imprensa, obviamente, não poderia ficar alheia.
Quem mais se desgastou nessa formidável maré bisbilhoteira foi a candidata à reeleição. Por opção existencial ou tática eleitoral, Marta Suplicy abriu mão da discrição e das reservas. Exibiu-se e se deixou exibir, não baixou as persianas, não preservou sua vida privada, levou-a à esfera pública e se isto lhe trouxe algumas fugazes empatias, alimentou definitivamente o potencial de antipatias.
A psicanalista ‘assumiu-se’, seus companheiros não a advertiram, a imprensa aproveitou-se, a candidata pagou a conta.
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Em tempo: A entrevista à Folha (quarta, 3/11) de Valdemir Garreta – secretário de Abastecimento e Projetos Especiais da prefeitura de São Paulo e um dos coordenadores da campanha de reeleição de Marta Suplicy – na qual acusa o senador Eduardo Suplicy de ser o culpado pela derrota da prefeita, veio confirmar plenamente o que está dito acima. Sem o indispensável fair play para enfrentar as vicissitudes e alternâncias do processo democrático, a assessoria da prefeita segue a linha adotada antes mesmo de começada a temporada eleitoral: arrombar o recato, fazer da vida privada assunto público. A Folha foi serrista ao explorar a candura do entrevistado? Como é que esta matéria do repórter Fernando de Barros vai ser classificada pelos ‘cientistas’ – é favorável ou desfavorável à prefeita paulistana? (A. D.)