Por mais paradoxal que pareça, há situações nas quais a indigência provoca o exercício da inteligência. Em certo aspecto, a realidade brasileira, dadas as suas tropicais singularidades, aguça a percepção de quem sobre sua realidade deposita o olhar. O presente ano tem sido pródigo e extremamente generoso com a mídia nacional, pelo menos no tocante à agenda política, oferecendo-lhe pautas constantes para as mais variadas explorações jornalísticas.
Em janeiro, deu-se a pífia convocação extraordinária do Congresso cuja eficácia até hoje ninguém soube explicar. Em fevereiro, estendendo-se por março, a inesperada ‘explosão’ da ‘bomba Waldomiro’. Em abril, o auge do fervilhamento em torno da possível CPI, ligada às denúncias do caso e habilmente contornada pelo governo. Ao fato, sobreveio a imprevisível MP que decretava o fechamento sumário de todas as casas de bingo. Em maio, como era um tanto previsível, a ladainha recorrente sobre o máximo-mínimo do salário mínimo.
Eis que, quando se imaginava exaurida, a capacidade da imaginação ‘planaltina’, num golpe de mestre, deu aos jornais novo e inesperado alento: a expulsão do correspondente do New York Times. Não satisfeito, o imaginativo governo ainda arrematou com mais um tema: a cota de 50% das vagas da universidade pública a estudantes carentes.
Confesso que o Brasil não se pode queixar por falta de provocações. É invejável o esforço que o governo faz para manter desperta a vigilância crítica dos seres pensantes. É uma torrente de acontecimentos a empolgar mais que qualquer competição esportiva ou mesmo tramas de sedutoras novelas. Nada supera a quentura dos ‘fornos’ de Brasília. Calma, leitor, sequer chegamos ainda à metade do ano.
A insensatez e a ironia
Se a parte inicial deste artigo deixou no leitor a sensação de que o autor não economizou o tom irônico, saiba estar correta a avaliação. Não se trata de uma escolha estilística, é quase uma imposição oriunda dos fatos.
Sem a ironia, traço do qual o jornalismo brasileiro anda um tanto afastado, o que resta é uma sisuda seriedade cuja conseqüência pode ser mais catastrófica à própria imagem do país. Quando à insensatez se contrapõe a ironia, está-se evitando que os acontecimentos sejam objeto da banal ridicularização do ‘humor infantil’ ou da ‘dramatização ingênua’.
A imprensa brasileira padece desse defeito: ela não sabe lidar com a ‘temperatura’ dos fatos. A seriedade com que a mídia aborda questões da política é a mesma destinada aos temas do futebol, do automobilismo e outros. No final das contas, tudo fica igual e nivelado. Diante de situações que afrontam a inteligência, não há muito o que definir como estratégia reativa: confrontação ou ironia. É simples. Levar a sério parece a única opção jornalisticamente inviável, sob pena de a própria cobertura também se tornar uma peça para teatro infantil.
Vamos ignorar os acontecimentos geradores de pauta, desde janeiro, para apenas nos concentrarmos nos mais recentes episódios: o caso do correspondente e as cotas para a universidade.
É óbvio que a reportagem do tal correspondente é abjeta e repugnante, dadas as inverdades nela contidas. Da extensa, exagerada e improdutiva cobertura que a imprensa brasileira concedeu à ocorrência, nada temos a destacar, até porque a mesmice rodeou os enfoques. Excetuando-se dois articulistas – Janio de Freitas, no artigo ‘O bêbedo e o desequilibrista’ (Folha de S.Paulo, 11/5/04), e Alberto Dines (‘A lógica da ilógica’, Jornal do Brasil, 15/5/04) –, as demais matérias em nada colaboraram para qualificar a compreensão dos leitores.
Janio de Freitas, sem nenhuma contaminação de adeptos das teorias conspiratórias, fez o mapeamento cirúrgico do fato, a partir das possíveis intenções do NYT, ao legitimar um artigo irresponsável e difamador. Alberto Dines, rompendo o enredo acerca do lugar-comum em torno da ‘emocionalidade do presidente’, firmou outro olhar: a reação do governo como estratégia para fatura política.
São dois rentáveis recortes críticos, próprios de quem se vale da inteligência e do pensamento analítico, atributos indispensáveis ao exercício do jornalismo. Provavelmente, os dois articulistas estão corretos. Nessa trama, não há espaço para a ingenuidade. É claro que, num primeiro momento, predominou a reação intempestiva, pessoal e imatura de quem, pela envergadura do cargo, em hipótese alguma, assim deveria proceder. Todavia, num segundo momento, diante do estrago inevitável, procuraram tirar proveito político. No final, todos os envolvidos faturaram.
O perdedor mesmo é o infeliz cidadão brasileiro a quem cabe, na condição de refém da infantilidade dominante, pagar a conta, seja em âmbito nacional, ante as agruras cotidianas, seja em nível internacional, por ficar exposto ao ridículo, graças a atitudes insensatas.
Agora, suponho todos os envolvidos estarem de bem com a vida, gozando as delícias de seus mandatos, enquanto as gotas amargas, conseqüência da imperícia e do despreparo, são ingeridas pelos que jamais são consultados a se manifestarem. Nada de novo no cenário. A regra básica é imutável: os de cima sempre se conciliam; os debaixo sempre dividem os prejuízos. Vamos levar a sério, em nome de quê?
Cotas da salvação ou da maldição?
Em mais uma peripécia de alto nível, o governo, na figura de seu ministro da Educação, anunciou o projeto para a reserva de 50% das vagas nas universidades federais, a fim de contemplar estudantes carentes, oriundos da escola pública. Antes, devemos lembrar a já existente cota de 20% para negros. Pela conta, portanto, 30% das vagas, nas supostas melhores universidades do país, estão destinadas à política da caridade social. Com tais medidas cartoriais, sem dúvida, o país chegará bem mais rápido ao abismo inevitável. Eis que, novamente, o tom da ironia ameaça despontar. Haverá outra opção? Será, companheiro, que definitivamente a inteligência ‘planaltina’ está em greve?
Para não parecer intransigente, vou lembrar ao nobre ministro que as universidades federais, na ampla maioria de seus cursos, não têm funcionamento noturno. Daí, então, surge o primeiro impasse. Como o estudante carente poderá freqüentar uma universidade que lhe cobra, ao longo do curso, disciplinas em diferentes turnos (ora pela manhã, ora pela tarde)? Com que recursos pecuniários, o estudante carente poderá sustentar sua permanência? Carente e desempregado, o novo universitário será amparado por quem? Que perspectiva o governo pretende formular? Um país com a mais alta taxa de graduados inúteis? Será intenção do atual governo, tão semelhante em tudo ao anterior, sucatear definitivamente a universidade pública, a exemplo do que, há décadas, vem ocorrendo com as escolas das redes municipal e estadual? A julgar pelas medidas que vêm sendo implementadas, a lógica dedutiva aponta para essa estratégia perversa.
Nada pior para o caminhar de uma sociedade que o ritmo indolente da caridade cuja existência histórica tem a mesma idade da miséria. A caridade é sempre o espasmo de conforto com o qual os injustos pagam sua dívida. Onde vigora a caridade, mais prolifera a degradação. Aplicando-se o princípio da caridade ao conhecimento, o efeito é ainda mais danoso e perverso. O que é dado com a mão aberta da esperança, com a mão fechada da implacabilidade é subtraído.
O modelo esboçado pelo ministro sequer é original. Basta conhecer o que ocorreu no México. Os estudantes da Universidade Nacional do México, instalada na capital, bem sabem o que recebem, em oposição, por exemplo, aos alunos da Universidade de Guadalajara. Seria interessante que algum jornalista realizasse uma reportagem a respeito do assunto. Fica a sugestão de pauta. Se alguém assumir a tarefa, sem as deformações aprendidas com o colega norte-americano do NYT, prestará enorme auxílio para, quem sabe, em tempo hábil, impedir mais um assassinato cultural no país.
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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio