Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Desafio de Singer é fazer Lula mudar

Na sexta-feira (4/3), a Folha de S.Paulo publicou uma carta do seu ex-secretário de Redação, o porta-voz da presidência da República, André Singer. Nela, além de desmentir que tenha comemorado a saída do jornalista Ricardo Kotscho do governo, Singer escreveu:


‘Também acredito que Fábio Kerche, titular da Secretaria de Imprensa e Divulgação, reúna todas as qualificações necessárias para dar continuidade ao trabalho desenvolvido por Kotscho’.


Nesse mesmo dia, no que o Planalto chamou de ‘ajuste organizacional’, Singer assumiu o lugar de Kerche, sem deixar de ser porta-voz.


Dos maiores jornais brasileiros, O Globo foi o único a ligar o nome à p’ssoa, na provocativa (embora imprecisa) chamada de primeira página: ‘Singer nega de manhã e assume Imprensa à tarde’.


Pêsames para a Folha por ter passado batido pela estranha carta ao noticiar os novos poderes do porta-voz. Pode ter sido distração, mas parece ter sido proteção. Sendo o jornal o que é, não poderá culpar o leitor que imaginar que, fosse outro o missivista, a ‘coincidência’ não deixaria de ser apontada – e destacada –, como fez O Globo.


Pois é improvável, para dizer o menos, que Singer não soubesse do defenestramento iminente de Kerche, quando deu a entender, ao elogiá-lo, de que ele estava mais firme do que uma rocha como substituto de Kotscho.


A Folha informou, a propósito, que Kerche ‘não participou dos trâmites da reformulação da área nem da reunião de ontem [4/3], na qual Lula tomou conhecimento do estudo’ [que pediu para Gushiken e Singer fazerem, depois da saída de Kotscho, em novembro].


A colunista Tereza Cruvinel, do Globo, foi mais específica:


‘Fábio Kerche ficou sabendo quase ao mesmo tempo que os jornalistas que cobrem o Planalto das mudanças na estrutura de comunicação anunciadas pelo ministro [de Comunicação do Governo] Gushiken’.


Partido da treva


Pena que não se perguntou a Singer o que teria a dizer sobre o seu elogio epistolar – e gratuito, como logo se viu – ao ainda secretário Kerche, a quem o ministro comunicou a degola sumariamente minutos antes que se consumasse.


A resposta talvez desse uma pista dos bastidores da decisão, trocando em miúdos o que o ministro Luiz Gushiken – apontado como o mentor e principal beneficiário da mudança – entende por ‘racionalizar e simplificar as estruturas de assessoramento de imprensa da Presidência, além de assegurar mais agilidade nos processos diários de atendimento aos profissionais da imprensa’, como o citou O Estado de S.Paulo.


No governo passado, as coisas eram separadas. O porta-voz (Sergio Amaral) portavozeava, a assessora Ana Tavares cuidava dos ‘processos diários de atendimento aos profissionais da imprensa’ – e o arranjo funcionava satisfatoriamente.


Agora, a ver. Primeiro se a centralização efetivamente resultou do fato de o presidente Lula ter concluído que ‘precisa melhorar a relação do governo com a imprensa’, conforme a versão otimista da Folha.


Segundo, se esse ‘melhorar’ significa o governo abrir-se à imprensa – o que nunca fez nesses seus 25 meses, bem antes ao contrário. A começar do próprio Lula, avesso a entrevistas como nenhum dos seus antecessores, muito menos o último, desde os generais-presidentes da ditadura. E não será decerto por achar que o silêncio é de ouro.


Terceiro, a ver se Singer quer – e é a pessoa certa para conseguir – que o presidente mude de atitude. O retrospecto não anima. Não só porque o Singer é ‘glacial’ e Gushiken é ‘fóbico a jornalistas’, nas preocupadas palavras de Tereza Cruvinel.


Mas porque, significativamente, no momento mais crítico da relação deste governo com a imprensa, o caso Larry Rohter, o porta-voz tomou o partido da treva, defendendo o equivalente à expulsão do correspondente do New York Times. O desastre só não se consumou, afinal, graças ao bom senso do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos. (O então secretário Kotscho também saiu do episódio de cara limpa.)


Maus modos


E o retrospecto não anima principalmente porque não se vislumbra no comportamento do presidente Lula qualquer sinal de aggiornamento. Os jornalistas continuam ‘isolados em cercadinhos durante cerimônias oficiais, para impedir que se aproximem do presidente’, escreveu Tânia Monteiro no Estado de domingo, fazendo um balanço do exasperante dia-a-dia do pessoal credenciado no Planalto.


A reportagem compartiha com o público o que as redações estão fartas de saber – que, da imprensa, Lula quer mais é distância. A tal ponto que, ‘para fugir do cerceamento’, revela a matéria, ‘os jornalistas têm um truque: escondem a credencial de imprensa e se misturam ao povo para chegar mais perto de Lula’. É de passar vergonha.


E quando conseguem que ele responda às suas perguntas, correm o risco de levar um tranco. Em agosto do ano passado, na República Dominicana, ouviram dos lábios presidenciais: ‘Vocês são um bando de covardes mesmo, hein? Não tiveram coragem de defender o Conselho Nacional de Jornalistas [sic]’.


Na semana passada, no Uruguai, nova traulitada. Perguntado sobre as suas declarações no Espírito Santo a respeito de ‘corrupção’ no governo Fernando Henrique – o que levou a oposição representar contra ele na Câmara dos Deputados e no Supremo Tribunal Federal –, Lula devolveu com maus modos: ‘Um dia vou perguntar à imprensa o que ela acha da repercussão que foi dada ao assunto’.


Seria o caso de saber o que Singer achou dessa reação. E, sobretudo, se ele está a fim de fazer o presidente se compenetrar de que, nas sociedades democráticas, mandatários não fazem perguntas à imprensa. Respondem às dela.


[Texto fechado às 18h25 de 07/03/05]