Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Desce a última página do Jornal do Brasil

Descansa em paz JB que amanhã pela manhã, quando chegar às bancas a edição do dia 31 de agosto de 2010, esgota seu deadline neste vale de resmas de papel, e alguém vai gritar o definitivo ‘Parem as máquinas’ num cantinho malassombrado da Avenida Brasil 500.


Penteia o teu último nariz de cera, JB, pede ao Joaquim Campelo para copidescar uma pirâmide invertida que está na página três, diz ao Gabeira para pesquisar a capa que o Alberto Dines fez do AI-5 – e desce a página para o túmulo dos grandes jornais.


Leva um abraço com bafo de uísque para o Zózimo Barroso do Amaral, sempre circulando entre as mesas, já sem o smoking da festa de ontem à noite, e pedindo pelo amor de Deus uma notinha. O foca dizia qualquer coisa que tinha acabado de ver na rua, para que o espírito caminhante de Zózimo sossegasse o facho e ele pudesse escrever a matéria. No dia seguinte, a notinha, um quase nada, uma bolha de sabão, estava impressa no jornal com um charme que enfeitiçaria dezenas de colunistas em gerações futuras, todos frustrados em tentar a mesma leveza e humor sofisticado, mas definitivamente sem conseguir o mesmo buquê do Zózimo.


Dúvida do general


Descansem em paz o velho atrasador de jornal, o calhau, o bandejão, o Brito’s, o plantão na porta do embaixador sequestrado, e também o ascensorista Vovô, o senhor negro encaixotado o dia inteiro em sua jaula de alumínio da Atlas e que quando passava pelo andar da redação anunciava ‘Parque de diversões’.


Seus antepassados tinham sido escravos, ele passara a infância capinando na roça, e não entendia que aquela gente de terno, jogando bolinha de papel amassado umas nas outras, pudesse estar trabalhando.


Acabou de rodar a última edição, JB, não se ouvem mais as Remington, mas a fumaça dos cigarros fumados por todos aqueles anos ainda toma o ambiente. Chegou a última notícia, e ela diz que é hora de tomar a saideira naquele sujinho na Leopoldina.


Descansa em paz pescoção das sextas-feiras, quando a turma do Esporte passava uma lista de contribuições pelas demais editorias e abria um garrafa de White Horse para que ficasse mais suave cavalgar noite adentro no dorso selvagem de títulos de três de 13. Descansem em paz Oldemário Touguinhó, Luarlindo Ernesto, nomes mais fabulosos da História do jornalismo brasileiro, superiores ao de Oderfla Almeida, o Alfredo ao contrário, que também já se foi e nunca teve a felicidade de trabalhar no JB da Condessa, da Cleusa Maria, da Susana Schild, da Norma Couri e de todas aquelas avançadíssimas moças do Caderno B, num tempo em que redação era coisa de macho.


Descansa em paz, Carlinhos de Oliveira, cronista atormentado de três textos semanais, muitos escritos na varanda do Antonio’s, muitos de olho em alguma cocota que passava e, como já era comum no Leblon, antes mesmo de Herbert Vianna anunciar no Paralamas, elas não olhavam para Carlinhos porque, embora gênio, o cronista usava óculos.


Descansa em paz o dia em que a condessa recebeu a figura augusta do general Costa e Silva. Depois de atravessar com o sujeito pela redação, a condessa disse que no dia seguinte seria publicada uma reportagem sobre a visita. ‘Tem elogio?’, perguntou o general. A dona do jornal desconversou. Disse que era uma reportagem descritiva, como são as boas reportagens. O general dispensou. ‘Se for assim, não precisa, eu gosto mesmo é de elogio.’


Chamada de primeira


Descansem em paz todas as histórias folclóricas de redação, todos os estagiários que foram encarregados de pegar a calandra e entregar ao editorialista Wilson Figueiredo. Soltem-se todos os balões que o Alberto Ferreira, o chefe da fotografia, autor da foto da bicicleta do Pelé, esticava no chão do laboratório. Chegou a hora triste de pautar um repórter para fazer a ronda dos cemitérios e descobrir que o morto de hoje é o próprio jornal. Escreva-se o funéreo com a elegância que formou várias gerações de grandes jornalistas e ajudou a fundar o espírito de uma cidade. Sem pieguismo, que os neoconcretistas não vão gostar. Pau na máquina. Fecha com a foto da freira caída na frente do ônibus, do Evandro Teixeira.


Descansem em paz Wilson Coutinho, a lauda de 30 linhas e 72 toques, e mais ainda Mara Caballero, a diagramação sem fios do Amilcar de Castro, os disfarces de mendigo do Tim Lopes, o elefantinho, o ele da primeira página, os classificados de troca de casais, os velhos homens de imprensa, as estagiárias da pesquisa, a reportagem geral com 53 repórteres e o especial do Caderno B em que Lena Frias mostrou para toda a Zona Sul que do outro lado do túnel havia outra cidade cultural, o Black Rio.


Descansem em paz a matéria com cópia em papel-carbono, o salário ambiente, o suplemento literário, o diretor que assediou a secretária e provocou uma passeata na Rio Branco, e também o dia em que o editor jogou para o alto o juramento que fez sobre a Bíblia de Gutenberg. Ele não resistiu e colocou na primeira página de uma segunda-feira a foto daquela repórter da Geral que tinha o mais belo bumbum da redação e fora flagrada, de biquíni, em Ipanema, em toda a exibição orgulhosa de seu trunfo, pelo fotógrafo que fazia a inevitável matéria sobre o movimento das praias no domingo. Descansa em paz a lenda de que se ganhava pouco mas era divertido.


É hora de descer a última página e, como nos artigos de Dom Marcos Barbosa, reunir todos os que se formaram naquela redação para dizer muito obrigado e amém.


P.S.: Não esquece de chamar na primeira.

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Jornalista