A Ferrari Testarossa branca rasga o asfalto sob prédios de art déco em tons pastéis, coqueiros e luzes de neon da ambiciosa e decadente Miami dos anos 1980. James “Sonny” Crockett (Don Johnson) e Ricardo “Rico” Tubbs (Philip Michael Thomas) estão em busca de mais um cartel de traficantes dentro do qual se infiltraram se passando por homens de semelhante moral. O universo do seriado criado pelo renomado cineasta estadunidense Michael Mann trazia a cidade tropical como a Casablanca de Rick Blaine (Humphrey Bogart), onde as intenções e personagens noturnas se confundem. Definido como “um seriado revolucionário” e de “influência ainda evidente”, Miami Vice foi responsável em minha infância por me fazer gostar de televisão e cinema, ou seja, comunicação.
Tentei artes cênicas, mas o meio no Brasil ainda é muito racista, assim como o próprio país. Enquanto nos EUA, com sua população composta por 13% de negros, ainda há papéis dignos para este grupo em suas produções, mesmo ainda não sendo reconhecidos nas premiações, no Brasil, com seus 53% de negros, o que víamos no início da década passada e até mesmo hoje na produção brasileira são estereótipos de negros e em boa parte em produções sobre escravatura. Esses mesmos atores e atrizes após serem “abolidos” da atração voltam para os matagais do desemprego. Prontamente migrei para o jornalismo e não demorei muito para estagiar na então prestigiada TV Cultura.
“Assistindo à entrevista, era possível se sentir como uma mosca na parede de um coquetel de gala da família real, onde os convidados de honra – não completamente bêbados, mas relaxando à medida que incrementavam o nível etílico com taças e mais taças do mais requintado Chardonnay – exploravam os limites da decência no comportamento social.” As palavras do jornalista estado-unidense Glenn Greenwald resumiram a edição do programa de entrevistas Roda Viva com Michel Temer do alto do provincianismo de uma suposta aristocracia cabocla emuladora dos péssimos hábitos da corte portuguesa. Um ambiente para o qual não quero voltar a participar.
Em tempos como este, o jornalismo se torna ainda mais necessário. Em 2015, oito profissionais morreram enquanto efetuavam seus trabalhos, conforme relatório sobre liberdade de imprensa da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert). A ONG suíça Press Emblem Campaign (PEC) classifica o país como o 5º mais letal para jornalistas, à frente de Estados em situação de guerra, como Líbia, Iêmen e Sudão do Sul, e atrás apenas de Síria, Iraque, México e França – esta, vítima de um ataque terrorista ao jornal satírico Charlie Hebdo. A organização Repórteres Sem Fronteiras apontou para o país a 104º posição no ranking de liberdade de imprensa, atrás de Chile, Argentina, El Salvador, Nicarágua, Peru e Panamá.
Comportamento de “nobreza” provinciana
Em 2013, escrevi para o Observatório da Imprensa o texto “Uma emissora pública com passado e mirando o futuro” no qual acreditava que o regresso de Marcos Mendonça ajudaria a sair das decepções amargas que foram as gestões de Paulo Markun e João Sayad. Me enganei, a cena narrada acima apenas é uma faceta desta administração e marca um dos momentos mais baixos do jornalismo brasileiro.
Durante meu estágio aprendi muito, conhecimentos que carreguei em meus trabalhos jornalísticos posteriores. Porém passei por situações embaraçosas e descobri que vivo em um país onde as relações se dão como se ainda vivêssemos numa corte real na qual nobres se premiam e mantêm uma barreira invisível barrando os indesejáveis. Quão maior é a pressão no ambiente onde demissões levam os restantes a produzir por três ou até cinco funcionários, maior é o espaço para surgir o assédio moral. Recordo de um colega que gritava com mulheres e estagiários além de fazer piadas misóginas, racistas e homofóbicas – porém levava quitutes para os chefes, ou seja, mais uma reprodução de comportamento arcaico de uma “nobreza” provinciana.
No último episódio de Miami Vice, “Freefall” (Queda Livre), a dupla decide abandonar a força policial após testemunhar o excesso de corrupção que chega ao governo além de perceber a futilidade da guerra às drogas. Na última cena, o sol já não é mais tão brilhante e sua palidez se confunde com as areias brancas da praia – ambos estão com melancolia nos olhos tendo a Ferrari branca entre seus corpos. Após afirmar que voltaria para o Bronx, em Nova York, Rico pergunta qual será o destino de Sonny e este, cheio de incerteza, devolve: “Eu não sei. Algum lugar mais ao sul, aonde a água seja quente, as bebidas geladas e eu não saiba o nome dos jogadores.”
Há mais realidade em atores se passando por policiais, enquanto se infiltram em organizações criminosas disfarçados, do que em muita coisa do jornalismo brasileiro. Quanto a mim, continuarei com alguns trabalhos ocasionais, que foi o que conquistei até hoje, mas vou para algum lugar aonde eu não saiba o nome dos jogadores.
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Gabriel Leão é jornalista