A polêmica iniciada pela publicação, em setembro do ano passado, de charges brincando com a imagem do profeta Maomé parece não ter fim. Diversos jornais europeus reproduziram os desenhos, na quarta-feira (1/2), em apoio ao jornal dinamarquês Jyllands-Posten e em defesa da liberdade de expressão, estendendo ainda mais a briga com os muçulmanos – pelo Islã, não é permitido retratar o profeta para evitar idolatria; além disso, uma das charges ousou colocar Maomé com uma bomba no lugar de seu turbante. A revista norueguesa Magazinet também reproduziu as charges no mês passado, o que já havia aumentado a revolta de líderes religiosos.
O Jyllands-Posten recebeu ameaças de bomba e produtos dinamarqueses foram boicotados em países muçulmanos. Depois disto, o jornal desculpou-se por ter ofendido a comunidade muçulmana, mas não por ter publicado os desenhos. Na quarta-feira (1/2), a Síria foi o último país árabe a retirar seu embaixador da Dinamarca, alegando que a publicação das caricaturas ‘constituía a violação de princípios sagrados para milhões de árabes e muçulmanos’. No mesmo dia, o escritório do Jyllands-Posten foi novamente evacuado devido a mais uma ameaça de bomba.
O primeiro-ministro dinamarquês, Anders Fogh Rasmussen, rejeitou os pedidos de governos árabes por uma desculpa oficial, alegando que não poderia censurar a imprensa. Segundo Flemming Rose, editor de Cultura do jornal dinamarquês, a questão é bem maior do que a publicação de 12 charges em um pequeno jornal. ‘Isto tudo é sobre a questão de integração e o quão compatível é a religião do Islã com a sociedade moderna’, afirmou. O editor-chefe do Jyllands-Posten, Carsten Justen, acredita que a vitória foi dos muçulmanos. ‘Eu acredito que ninguém na próxima geração vai desenhar o profeta Maomé na Dinamarca’, opinou.
Apoio europeu
Jornais na França, Alemanha, Itália, Holanda, Espanha e Suíça publicaram algumas das charges esta semana. A briga reflete um confronto cultural entre o Islã e o Ocidente, que teve início em 1989 com a declaração da sentença de morte do escritor anglo-indiano Salman Rushdie pelo aiatolá Ruhollah Khomeini no Irã, depois da publicação dos Versículos Satânicos. Em 2004, o cineasta dinamarquês Theo van Gogh foi assassinado após fazer o filme Submissão, sobre a violência contra mulheres em sociedades islâmicas. ‘Se os muçulmanos tivessem protestado contra a pena de morte imposta a Salman Rushdie, ninguém ia desrespeitar o profeta, seja na Dinamarca, Noruega ou França’, opinou Sayyed Hassan Nasrallah, líder do Hezbollah em Beirute.
O jornal francês France Soir publicou os 12 desenhos, afirmando que ‘nenhum dogma religioso pode impor seu ponto de vista em uma sociedade democrática’. Sob a manchete ‘Sim, nós temos o direito de fazer caricaturas de Deus’, o jornal também estampou em sua primeira página, além de Maomé, desenhos de deuses budistas, cristãos e judeus sentados em uma nuvem sobre a Terra, com Deus dizendo: ‘Não reclame, Maomé, todos fomos desenhados aqui’. Arnaud Lévy, editor do France Soir, informou que não houve acordo entre os jornais para publicarem as charges no mesmo dia.
Demissão
Na França, a resposta dos muçulmanos foi imediata. Dalil Boubakeur, líder do Conselho Francês do Culto Muçulmano, classificou a publicação dos cartuns como ‘provocação’ e um abuso da liberdade de expressão. De acordo com as agências France Presse e AP, o proprietário do France Soir, o magnata egípcio Raymond Lakah, anunciou que demitiu o editor Jacques Lefranc ‘como um símbolo de respeito às crenças e convicções de cada indivíduo’. O Ministério do Exterior da França condenou inicialmente a decisão do jornal, em defesa da liberdade de expressão, mas afirmou que o país condena tudo o ‘que fere os indivíduos em suas crenças e convicções religiosas’. Estima-se que cinco milhões de muçulmanos vivam na França e três milhões, na Alemanha.
O jornal conservador alemão Die Welt publicou um desenho na primeira página e afirmou em seu editorial que ‘os protestos dos muçulmanos deveriam ser levados a sério se eles fossem menos hipócritas. Quando a televisão síria mostrou documentários em horário nobre representando rabinos como canibais, os imames [sacerdotes muçulmanos que dirigem preces nas mesquitas] ficaram quietos’. O editor-chefe do Die Welt, Roger Köppel, afirmou não ter se arrependido de ter reproduzido os cartuns. ‘Se pararmos de usar nosso direito jornalístico de liberdade de expressão dentro de nossas fronteiras, vamos começar a ter um tipo de mentalidade de apazigüamento’, disse. O Berliner Zeitung também publicou os desenhos.
Na Itália, o La Stampa e o Corriere della Sera publicaram os cartuns; na Espanha, o El Periódico e o El Mundo decidiram reproduzi-los; e, na Suíça, os jornais Tribune de Genève e Blick fizeram o mesmo. A organização Repórteres Sem Fronteiras elogiou o apoio da imprensa européia. ‘Todos os países europeus deveriam apoiar as autoridades dinamarquesas para defender o princípio de que um jornal pode escrever o que quer, mesmo que ofenda algumas pessoas’, afirmou o secretário-geral da RSF, Robert Ménard.
Protestos no mundo árabe
Palestinos armados ficaram por 45 minutos em frente ao escritório da União Européia em Gaza nesta quinta-feira (2/2) para protestar contra a republicação das charges. Alguns deles, ligados ao Fatah, exigiam desculpas dos governos da França, Dinamarca e Noruega. Um panfleto assinado pelo Fatah e pelo grupo Jihad Islâmica afirmava que igrejas e o escritório da União Européia seriam atacados. Foi o segundo protesto dos muçulmanos esta semana. Sami Abu Zuhri, porta-voz do Hamas – que venceu as eleições parlamentares palestinas –, pediu que os governos se desculpassem, mas ressaltou que os estrangeiros em Gaza não seriam alvos dos protestos. Informações de Angela Charlton [AP, 1/2/06], Alan Cowell, Dan Bilefsky e Judy Dempsey [The New York Times, 2/2/06], Editor & Publisher [2/2/06], Luke Harding e Kim Willsher [The Guardian, 2/2/06] e Reuters [1/2/06].