Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Dias de tortura e morte




ALBERTO DINES


Eu não consigo lembrar [como soube da morte de Vladimir Herzog]. Eu tenho a impressão que foi o Cláudio Abramo que me telefonou, na minha casa, no domingo. [O caso] estava muito presente para mim, porque duas semanas antes eu escrevera que havia uma campanha de intimidação, e isso evidentemente me marcou muito. Eu não conhecia o Herzog, só de nome, mas aí entra um dado que para mim é importante – talvez eu esteja até exagerando essa importância, mas para mim é importante. Eu sabia que ele era judeu, o nome é inconfundível, e sabia também que a morte de um jornalista judeu não era casual, quer dizer, era um pressentimento meu e esse pressentimento eu ainda tenho até hoje. Eu não tenho uma comprovação, mas não consigo separar o fato de eu saber que ele era judeu, quer dizer, há alguma relação. E isso é interessante porque em 2004, quando o assunto Herzog foi de novo levantado, eu escrevi sobre isso chamando a atenção para o seguinte: a polícia foi lá para prendê-lo, ele pediu para ir no dia seguinte porque tinha alguma coisa, não sei exatamente. Ele deu uma desculpa, e aceitaram, o que já é uma coisa diferente, quer dizer, não foi uma operação militar para prender um subversivo, foi uma diligência daquelas que eles faziam, e fizeram milhares – eu fui preso numa coisa parecida também. Então, chama a atenção que em vez de levá-lo preso, algemado, encapuzado, não, foi aberto, todo mundo soube. E ele se apresenta no dia seguinte, na hora aprazada, eu acho que de manhã cedo, lá no DOI-Codi. Oito horas depois, ele estava morto.


Quer dizer, não foi uma operação daquelas antiterrorismo, alguma coisa aconteceu. Por que ele foi morto? Por que ele era mais frágil? Eu não acredito em acidente de serviço porque nesse negócio de tortura, o cara sabe, quer matar mesmo, e aí começa a bater para matar, mas o processo não escapa da mão dele. Vou dar um caso que me lembrei recentemente, que é o seguinte: a Inquisição, três séculos atrás, tinha um manual de tortura. Eram graus de tortura muito estabelecidos, muito rígidos. Eram escalas de tortura e nenhuma delas era mortal, era para matar. Em geral era coisa pra distender músculos, para fazer sofrer, mas não tinha fogo – pelo menos no período que eu estudei da Inquisição, nos séculos 17 e 18. Então, era tudo muito estudadinho. Eles queriam obter as confissões; eles não queriam matar porque ali não interessa matar o preso, interessa obter informações. [No caso do Herzog] eu acho que não foi um acidente de serviço, não foi. E também não foi uma prisão de um perigoso terrorista, senão teriam levado ele naquela hora mesmo, na sexta-feira à noite. São suspeitas ficam no meu íntimo, mas que eu não estou escondendo porque eu acho que esse tipo de suspeita tem que ser compartilhada. Muitos jornalistas que foram presos tinham nomes estrangeiros: Markun, Konder, Weis. O [Luiz] Weis é judeu, mas o outro judeu que foi preso e torturado morreu.


E aí tem um clima geral que a gente não pode esquecer. É o seguinte: o [carrasco nazista Josef] Mengele estava ano Brasil nesse período. Nos textos que ele deixou, e que foram descobertos e publicados pela Folha alguns anos atrás, [havia] comentários sobre a situação política mundial e também brasileira. Mengele tem o ódio da psicanálise que está na mão dos judeus, ele diz isso numa das cartas que foram encontradas. É um tipo de ideologia, vamos chamar assim, que parece muito com a ideologia dos órgãos de repressão da Argentina e também do Brasil. E havia junto aos militares brasileiros um forte sentimento não digo anti-semita – não queriam fazer campos de concentração, não era bem assim –, mas havia uma coisa muito preconceituosa. E aí tem um testemunho meu: em 1968, quando eu fui preso, e nos interrogatórios do início de 1969, com o então coronel Montagna, depois general, teve um dia lá que o dia inteiro ele só perguntou sobre questões judaicas: ‘Como é que os judeus dirigem um jornal católico? Como é que é isso? Como é que é?’, coisas só relativas a judaísmo. Eu fui preso não como um judeu, eu fui preso como um jornalista que furou a censura e fui fazer um discurso na PUC, como paraninfo, dias depois do AI-5. Então, num inquérito lá da 2ª Seção do Primeiro Exército, por que tem que perder um dia inteiro para discutir a questão judaica? Isso é interessante.


O que é importante para mim é mostrar que o a ditadura brasileira não é um fenômeno à parte das outras ditaduras de direita. Ela se impregna das mesmas substâncias, tal como aconteceu na Argentina, em que você tem uma ditadura que é de direita, mas que também é explicitamente anti-semita. E a brasileira também, de uma forma mais controlada, mas também com esse ingrediente.




RODOLFO KONDER


Eu acho que eles não teriam investido sobre ele com a mesma fúria, porque o Vlado, primeiro, era um ponto de ligação com [o secretário estadual da Cultura José] Mindlin e com o [governador de São Paulo] Paulo Egydio Martins. E o Paulo Egydio era um homem do Geisel. E, segundo, o Vlado era judeu e os fascistas sempre são anti-semitas. Então, eu acho que uma das razões porque eles perderam o controle e bateram com ódio foi porque o Vlado era judeu também. Essa foi uma das razões.




AUDÁLIO DANTAS


Vlado se apresentou no sábado [25/10/1975] e no mesmo sábado foi morto. Naquela semana nós vivíamos no sindicato em tensão permanente em função dessas prisões. E, diga-se de passagem, isso é fundamental desde a primeira prisão, o que não acontecia em relação a outras prisões, em outras áreas e outros setores profissionais. O sindicato tornou público [as prisões] em notas à imprensa, notas comunicando que o jornalista tal tinha sido preso ou tinha desaparecido de casa, coisa desse tipo. Nem todas [eram publicadas na imprensa]. Aliás, a morte do Vlado foi publicada no domingo, dia seguinte, só pelo O Globo. Eu acho que no Estado de S.Paulo foi publicada uma nota que nós distribuímos no sábado à tarde, dizendo da apresentação do Vlado, não da morte.


Naquela semana havia uma certa distensão dentro do sindicato porque nós, em função das denúncias e de alguns encontros que tivemos no 2º Exército – aliás, encontros não: fomos convocados, eu e a diretoria do sindicato –, notamos algumas manifestações de que a poeira estava baixando um pouco. E naqueles dias, eu acho que na quarta-feira, eu fui a uma assembléia que a SIP (Sociedad Interamericana de Prensa) estava realizando em São Paulo, que é uma entidade patronal, com representantes de jornais de vários países da América Latina e dos Estados Unidos. E aí eu fiz a comunicação dessas prisões. Essa comunicação rendeu uma convocação ao 2º Exército, no mesmo dia, à tarde. Mas ao mesmo tempo nós tínhamos a ilusão de que, em função da presença de personalidades ligadas à imprensa continental, eles não fossem continuar na escalada que vinham.


Eu tinha um convite para fazer uma palestra para estudantes em Presidente Prudente. Reunimos a diretoria e chegamos à conclusão que podíamos atender, porque era fim de semana e as coisas estavam mais calmas. Eu fui na sexta-feira a essa palestra. E no sábado à noite, eu soube, em Presidente Prudente, pelo Fernando Pacheco Jordão, e depois pelo Gastão Tomás de Almeida, que era o diretor-secretário [do sindicato], do que tinha acontecido. Eu confesso que eu temia por vários outros, mas o Vlado… não me tinha passado pela cabeça que pudesse acontecer com ele. Evidentemente, no dia seguinte, domingo, começou a maior mobilização da história da categoria dos jornalistas em São Paulo, talvez no Brasil, que foi de decisão de denunciar aquele assassinato.




RODOLFO KONDER


Eu cheguei de uma viagem ao exterior representando a Visão. Cheguei no dia 23 de outubro [de 1975] e tinha uma recepção nessa noite no consulado da Inglaterra, mas eu estava cansado, chegando da viagem, e daí não fui. Isso podia ter mudado minha vida porque, nessa recepção, o Vladimir Herzog, na presença da Clarice, disse para o Marco Antonio [Rocha]: ‘Olha, o pai do Paulo Markun conseguiu visitá-lo lá no DOI-Codi e ele mandou um recado, que os nossos nomes estão todos lá e que nós vamos ser presos’. Aí o Marco Antonio ficou em pânico: ‘Pô, mas só agora você me falou isso, Vlado?’. Aí o Vlado: ‘Eu achei que não era assim uma coisa tão urgente’. ‘Claro que é! Imagine!’. O Vlado era meio distraído, aquela coisa. Aí o Vlado perguntou para o Marco Antonio: ‘O que é que nós vamos fazer?’. Aí o Marco Antonio: ‘Vamos procurar o Konder’. Eu era o ‘comissário do povo’, deveria ter a resposta. Não tinha resposta para nada, mas, enfim, eles me atribuíam essa competência. Só que isso foi na noite do dia 23. No dia 24, às seis horas da manhã, tocou a campainha. Eu abri a porta. Era a polícia e eu fui preso. Não estava nem sabendo que nós íamos ser procurados.


Fui levado para o DOI-Codi, os caras me tratando amavelmente, mas já na caminhonete me enfiaram um capuz preto. Cheguei ao DOI-Codi, me obrigaram a tirar a roupa, botar um macacão, não podia ter cinto, nem o sapato podia ter cadarço. Fui fichado e me botaram numa sala de espera com o capuz preto na cabeça e mais algumas pessoas sentadas num banco de madeira em volta da sala. Aí depois veio o Marechal, que era o apelido do carcereiro, me levou pelo braço até o andar de cima. No andar de cima, fui colocado numa sala, sentado num banquinho sem encosto, de capuz preto. E o cara começou a me interrogar. É uma situação ridícula você tentar argumentar com um capuz preto na cabeça. Aí o cara disse: ‘Seu comuna de merda, você tá pensando o quê? Que veio aqui pra me fazer perder tempo?’ Aí eu senti que ele se levantou, passou pelo meu lado, abriu a porta e disse: ‘Marechal, manda vir uma equipe aí e manda trazer a ‘pimentinha’’. Eu digo: ‘Pimentinha?’ Eu já entrei em pânico, que eu sou um velho macho e não sei qual o destino dessa ‘pimentinha! Mas a ‘pimentinha’ era como eles chamavam a máquina de dar choques elétricos. Aí entraram dois sujeitos, começaram a me dar uns tapas, uns chutes. E gritos. Depois você percebe que ali você está acuado e amedrontado, mas eles batem com técnica, nem é para deixar marca, é para dobrar você, para quebrar você. Aí depois montaram a ‘pimentinha’, me obrigaram a ajudá-los a botar os fios nos pulsos e nos tornozelos. E com o fio desencapado eles me davam choques na orelha, no pescoço, nas costas, nos rins. Você só grita. Eles não querem mais saber o que você sabe e o que você não sabe. Eles querem quebrar você, entendeu? E ainda tem o seguinte: você se suja todo, porque perde o controle das funções fisiológicas. É uma situação muito desagradável e humilhante.


Quando terminou essa sessão, o Marechal me carregou pro andar de baixo. Eles foram almoçar, até começaram a discutir o que iam almoçar, onde iam almoçar. Já tinha terminado o expediente… E à tarde eu voltei a subir a escada, com a ajuda do Marechal, mas já para entrar no jogo do gato e rato. ‘Realmente nós éramos comunistas de uma base e tal…’. Tive que assinar uma confissão de próprio punho, aquele negócio que eles exigiam. Aí voltei para a sala de espera, onde eu fiquei as primeiras 48 horas, isso já no dia 24 [de outubro de 1975]. Dormimos lá, sentados. O [George] Duque Estrada também já estava lá. E na manhã do dia seguinte, eu vi que o Vlado chegou. Eu já olhava assim por baixo do capuz, e eu o identifiquei pelas pernas, pelos sapatos que eu conhecia bem. Comprávamos sapatos juntos, e ele era muito meu amigo, então eu sabia que era ele que estava ali. E logo depois ele foi levado. Passou-se algum tempo, mas ele não foi levado para cima, ficou na sala ao lado da nossa – por isso, depois eu pude ouvir os gritos dele. Nós ficamos ali algum tempo e veio o Marechal nos chamar – eu e o Duque Estrada –, e o sujeito que o estava interrogando, o torturador, era o Pedro Mira Granciere, um sargento da Marinha que depois morreu de maneira estranha, deve ter sido queima de arquivo. E ele disse: ‘Olha, o Vladimir está aí com embromação, então é melhor vocês dizerem a ele para abrir o jogo. Senão, ele vai entrar na porrada’. Nós: ‘Olha, Vlado, eles já sabem que nós tínhamos uma base, quem eram os membros da base, já estão sabendo’. Eu até acrescentei, achando que eu era esperto: ‘Olha, Vlado, eles sabem, inclusive, que o responsável pela nossa base era o Miguel Urbano Rodrigues’ – o Miguel já tinha ido embora para Portugal. E o Vlado disse assim: ‘Eu não sei do que vocês estão falando, eu nunca fui comunista, não sou comunista’.


Aí o sujeito mandou o Marechal nos levar de volta para sala de espera. Passou-se mais algum tempo e ele começou a gritar. A gritar primeiro levando porradas, socos e aquela coisa, e depois levando choques elétricos – os gritos são bem diferentes. E eu tinha passado na véspera pela experiência, sabia exatamente o que estava acontecendo. Inclusive um sujeito ligou um rádio no corredor, supostamente para abafar o barulho, e o rádio estava dando a notícia de que o general [espanhol Francisco] Franco [Bahamonde (1892-1975)] tinha recebido a extrema-unção. Aí, tudo cessou: os barulhos, os gritos. Algum tempo depois, veio o Marechal e me pegou de novo – o Duque Estrada dessa vez não foi –, porque o Vlado já estava assinando uma confissão do próprio punho, estava muito nervoso, trêmulo, mas já tava fazendo a sua confissão, que aliás começava assim: ‘Fui aliciado pelo Partido Comunista, pelo Rodolfo Konder…’. Quer dizer, é uma confissão que a polícia ditava, ditou ali para ele, porque nenhum de nós usaria essa expressão ‘fui aliciado’.


Bom, aí ele tinha dúvidas sobre um cara, que era na verdade o Argileu, um velho, um veterano da imprensa, que foi a algumas das nossas reuniões, mas quase nunca aparecia. E o nome dele ainda não tinha aparecido, então no jogo do gato e rato ele tinha sido preservado. Então, eu falei: ‘Vlado, acho que você está confundindo’. E ele disse: ‘Era um sujeito de cabeça grisalha, assim, assim assado…’. ‘Não, acho que você está confundindo com o nosso assistente. Você deve estar nervoso…’. Ele percebeu e disse: ‘É, você tem razão. Eu estou muito nervoso e devo estar confundindo’. Aí, de novo, o Marechal me levou de volta para sala de espera e, aparentemente, estava tudo resolvido. Só que, é claro, na hora de assinar a confissão, ele teve um momento de indignação. Ele era uma pessoa muito ética. E é um momento difícil, você entregar o papel em que você dá o nome de amigos. É muito chato, eu sei que é muito chato, é um trauma, é um negócio difícil. E ele teve um momento de indignação e pegou o papel – ele já tinha escrito, já tinha assinado, inclusive o exame da letra confirmava, era a letra dele –, ele pegou o papel e rasgou e jogou fora. E aí os caras foram para cima dele, não mais com técnica, mas com raiva, porque era voltar tudo à estaca zero. E aí ele foi empurrado e bateu com a base da cabeça no parapeito de uma janela baixa que tinha lá, de mármore, e morreu do trauma.




JOSÉ VIDAL POLA GALÉ


Eu fiquei sabendo [da morte de Vladimir Herzog] nesse reencontro que eles levaram todo mundo para fazer relatório. Deve ter sido no dia 2 [de novembro]. Com a morte do Vlado houve uma reação muito forte, saiu em tudo quanto é jornal no mundo todo. Isso que apressou a [nossa] saída do DOI-Codi para o DOPS. E em seguida a gente saiu. Alguns ficaram presos ainda, mas já com processo formalizado. Mas o episódio Vladimir Herzog, no meu entendimento, é um marco na militância, apressou a redemocratização. Isso foi em 1975. Aí vieram as eleições e assuntos que eram proibidos de serem tratados nos jornais passaram a ser tratados nos jornais. Porque tinha uma briga dentro do próprio regime militar, havia grupos e esses grupos estavam em confronto. E essa força da sociedade ajudava a ser mais a favor da evolução, não da obstrução do processo, mas da evolução para uma abertura. Depois do Vladimir Herzog houve o [assassinato do operário metalúrgico] Manuel Fiel Filho [em 16/1/1976], que daí o [presidente Ernesto] Geisel afastou o Ednardo D’Ávila, que era o general [comandante] do 2º Exército. O próprio sistema estava caminhando para uma abertura contra a linha-dura.







Vladimir Herzog em cena doméstica
(acervo do Sindicato dos Jornalistas
Profissionais no Estado de São Paulo)



LUIZ WEIS


Era o começo de outubro de 1975, quando um dia o Vlado me disse, ‘Olha…’ – bom, a caça já tinha começado. Uma era a caça [havida] depois da eleição de 1974 e do esmagamento da luta armada, da resistência armada. A ditadura voltou-se contra o Partido Comunista porque isso fazia parte daquele conflito que opunha o [general] Sílvio Frota [então ministro da Guerra] ao Golbery [do Couto e Silva, chefe da Casa Civil] e ao [presidente Ernesto] Geisel. A idéia da ultradireita era mostrar que havia um conluio entre PMDB, igreja e o Partido Comunista, o que tinha dado, nas eleições, na vitória eleitoral de 1974. Aí começa uma caça aos comunistas e aos jornalistas comunistas. E o primeiro nome que me vem e que sofreu horrores [é o de] Marco Antonio Coelho, pai do Marco Antônio Coelho Filho, que está hoje, em 2005, na TV Cultura. E a outra caça começou contra o jornalismo da TV Cultura, com o pústula do Cláudio Marques escrevendo no Shopping News, e aquele outro pústula, o deputado Wadih Helou, da Assembléia Legislativa, da Arena [Aliança Renovadora Nacional, partido de apoio à ditadura]. Enfim, denunciavam que aquele era um ninho de comunistas, porque tinham passado um documentário sobre o Vietnã.


No plano pessoal, nesse momento eu tomei duas iniciativas de comum acordo com o Vlado. Numa, eu fui ao Estadão e levei o problema para o diretor de redação, na época era o Fernando Pedreira. ‘Olha, vocês precisam atentar para o que está acontecendo, nós estamos sendo vítimas de uma caça às bruxas. Não tem nada, estamos fazendo jornalismo, estamos tentando fazer um trabalho decente, mas não é um ninho de subversão, não’. Eu fiz uma segunda coisa, mas preciso contar antes um pequeno episódio. Numa tentativa com a qual eu compartilhei [Vlado propôs]: ‘Vamos fazer um pouco de média com o governo federal’. Então, pela primeira vez, foi uma equipe da TV Cultura – aliás, não foi uma equipe, fui só eu, porque não havia dinheiro e nós íamos usar imagens da TV Educativa de Pernambuco – cobrir um evento qualquer do Geisel. Era inauguração de uma coisa ligada a petróleo, me lembro que estava o [ministro de Minas e Energia] Shigeaki Ueki, e foi lá que eu conheci o Humberto Barreto, que era o Secretário de Imprensa da Presidência, o filho adotivo do Geisel. Quando a coisa começou a ficar preta aqui em São Paulo, eu tive uma idéia e disse: ‘Vlado, eu vou [a Brasília] falar com o Humberto Barreto para ele levar [o caso das perseguições] para o governo’. Fui, fui recebido e contei a história para ele. Apareceu um general também, e a primeira coisa que esse [general fez] foi pegar meu nome, RG, filiação, data de nascimento, porque queria checar a ficha. Mas, enquanto isso, expliquei, apontei para o Humberto: ‘Olha, está acontecendo isso e isso e isso, todo domingo está saindo, esse Cláudio Marques está escrevendo, mas nada é verdade’. ‘Não se preocupe com isso, isso é coisa paroquial, não tem nada, volta lá, vai para o seu trabalho, não tem problema nenhum’, [disse o Humberto Barreto]. Quer dizer, a TV Cultura não estava sob ameaça, era uma coisa paroquial. Assim ele desqualificou o problema, não dava importância.


Pouco depois, era secretário da Cultura [de São Paulo] o José Mindlin, quando nós fomos chamados, o Vlado e eu, pelo Mindlin. Contrafeito, mais constrangido do que se possa imaginar, ele diz: ‘Nós estamos com um problema. O SNI verificou que você é dirigente sindical, você é indemissível, e chegou-se à conclusão que a TV Cultura, dadas as circunstâncias, não pode ter, ainda mais numa função de segundo homem do jornalismo, o redator-chefe dos telejornais, um dirigente sindical’. Era para eu me demitir. Então me demiti, uma coisa traumática para mim, mas era a idéia de ser o boi de piranha. Aí fui para a Veja. Pedi emprego na Veja e me deram. O chefe de reportagem era o Paulo Totti, um sujeito formidável; falou com o Mino Carta, que era o diretor, e fui trabalhar na editoria de Política, cujos editores eram o Marcos Sá Corrêa e o Almir Gajardoni. Eu estava lá na noite em que vieram pegar o Vlado na TV Cultura.


Eu morava sozinho na época, com uma empregada, e por sorte eu estava no fechamento, aqueles fechamentos horrorosos da Veja, que terminavam às quatro, cinco da manhã. Aí, toca o meu telefone. Eu já sabia que o Vlado tinha sido procurado na TV Cultura e que tinham feito um acerto para que ele se apresentasse na manhã seguinte, 25 de outubro, no sábado. E àquela época já tinham sido presos todos os meus amigos, quer dizer, o [Paulo] Markun, o George Duque Estrada, o Anthony de Christo, o Rodolfo Konder, enfim, todos jornalistas que efetivamente formavam uma basesinha do Partido [Comunista]. Nós nos limitávamos a receber a Voz Operária, conversar um pouco e tocar a vida; era uma coisa pouco mais que nominal. E na sexta-feira de madrugada, estou lá trabalhando, a empregada me liga e diz: ‘Olha, vieram umas pessoas aqui, disseram que acharam seus documentos, perguntaram pelo senhor, vieram entregar os documentos que o senhor perdeu’. Falei: ‘Tudo bem, faz uma coisa: você é de Minas, né? Então vai embora, vai ver sua família, tira uma semana de folga e vai embora amanhã’. E voltei para casa acompanhado, mas só para trocar de roupa. [Morava] na rua Ministro Rocha Azevedo, numa vila entre a Oscar Freire e a Lorena, do lado esquerdo de quem sobe. E não fiquei lá: peguei minhas coisas e fui para a casa de um amigo. Me lembro que no meio da noite, de sábado para domingo, eu estava com tranqüilizantes, mas sabia que era de madrugada, eu ouvi tocarem a campainha, gente chegando. Pensei: ‘Pô, me acharam aqui, dane-se’. Eu sei que apaguei na hora. De manhã, quando eu acordo, tem meu amigo lá, é um publicitário, ele olha para mim: ‘Weis, você vai ter que ser muito forte agora. Mataram o Vlado’.


Aquele barulho todo de madrugada era gente que tinha vindo contar. Bom, a partir daí, então, mais um motivo para eu continuar fora de circulação. Eu acho desnecessário falar das emoções, é um tanto quanto óbvio, não é? Como é que você fica? Você fica aterrorizado pelo que possa acontecer contigo. Você fica querendo comer o fígado de todo mundo, lógico, uns filhos da puta. E evidentemente você pensa no teu melhor amigo, no Ivo, no André, na Clarice que foi tua colega de classe e a quem você apresentou para o Vlado. É um impacto, é o dia mais trágico da minha vida, nada que se compara.