O gesto de um homem chamado Mahatma Ghandi atravessou o tempo. Corriam os anos 1930 e os tiranos ingleses haviam proibido a extração e comércio de sal em território indiano porque pretendiam eliminar qualquer competição com o seu produto. A decisão dos colonizadores condenava milhares de pessoas à fome porque colher sal era crime. Desafiando a ordem injusta, um homem aparentemente frágil catou um punhado de sal, numa praia de Gujarat, ergueu o punho e começou a luta efetiva pela independência do país, que seria vitoriosa 20 anos depois. Um homem, um punhado de sal e um gesto que mudou a História.
Dilma Rousseff, que comanda um governo cuja jóia são as riquezas existentes na camada pré-sal, pode ter marcado sua trajetória no poder a partir de outro gesto simbólico. No dia 21 de fevereiro, Dilma foi ao encontro de seus algozes, ‘comemorar’ o aniversário de 90 anos do jornal Folha de S.Paulo. Mais que uma simples visita de cortesia a um veículo que publicou sua ficha falsa na capa (e jamais fez nenhuma autocrítica) e respaldou um de seus colunistas mais conhecidos a xingá-la de ‘vadia e vagabunda’, ela fez um discurso incompreensível àqueles que lutam pela liberdade de expressão e o direito à comunicação no país. A síntese é clara: ‘Ao comemorar o aniversário de 90 anos da Folha de S.Paulo, este grande jornal brasileiro, o que estamos celebrando também é a existência da liberdade de imprensa no Brasil’.
‘Doutrina Dilma’
Gesto e discurso são objetos de intenso debate na blogosfera, a partir de alguns conhecidos ‘blogueiros sujos’ (assim chamados por José Serra), que na recente disputa eleitoral posicionaram-se ao lado da presidenta. O jornalista Leandro Fortes escreveu:
‘O pecado capital de Dilma foi ter, quase que de maneira singela, corroborado com a falsa retórica da velha mídia sobre liberdade de imprensa e de expressão. (…) A presidenta usou como seu o discurso distorcido sobre dois temas distintos transformados, deliberadamente, em um só para, justamente, não ser uma coisa nem outra. Uma manipulação conceitual bolada como estratégia de defesa e ataque prévios à possível disposição do governo em rever as leis e normas que transformaram o Brasil num país dominado por barões de mídia dispostos, quando necessário, a apelar para o golpismo editorial puro e simples’ (ver ‘Dilma na cova dos leões‘).
O repórter especial de CartaCapital enxerga, na atitude de Dilma, algo a mais. Trata-se, para Fortes, de ‘uma concessão que está no cerne das muitas desgraças recentes da história política brasileira, baseada na arte de beijar a mão do algoz na esperança, tão vã como previsível, de que esta não irá outra vez se levantar contra ela. Ledo engano. (…) A presidenta conhece a verdadeira natureza dos agressores. Deveria saber, portanto, da proverbial inutilidade de se colocar civilizadamente entre eles’, vaticina o jornalista.
Já o blogueiro Altamiro Borges, observa a cena a partir de duas interpretações possíveis:
‘Os mais otimistas afirmam que Dilma cumpriu o seu papel de chefe de Estado, que não tinha como evitar o ritual – junto com ela estiveram os presidentes do Senado e da Câmara, ministros do STF e lideranças políticas de distintos partidos. Já os mais incrédulos criticam a participação da presidenta na homenagem aos algozes da Folha. Alguns suspeitam que sua atitude sinalize nova cedência aos barões da mídia’ (ver ‘E Dilma foi à festa dos algozes da Folha‘).
Ao coro dos contentes veio se juntar o jornalista Alberto Dines, decano do Observatório da Imprensa, em comentário radiofônico publicado no OI (25/2/2011). Para Dines, a participação da presidenta nos 90 anos da Folha é parte da ‘Doutrina Dilma para a Mídia’. Para o Observador, sua presença no convescote dos Frias é uma ‘saudação a uma imprensa livre e plural’ (ver ‘O recado da presidente‘).
Desafio à lógica
Estranha coincidência, três dias depois coube ao ministro das Comunicações, Paulo Bernardo (PT), ‘suitar’ a fala de Dilma na festa da Folha. Bernardo foi categórico e sinalizou o recuo, já desqualificando o projeto herdado do governo Lula: só irá encaminhar o projeto do novo marco regulatório do setor no segundo semestre, à apreciação do Congresso Nacional, porque ‘tem grandes chances de ter uma besteira no meio’. Por ‘besteira’ entenda-se algo que possa contrariar os interesses dos empresários da comunicação…
Mais que meia palavra, basta um gesto para bons e maus entendedores. Ao invés de um punhado de sal erguido contra os grilhões da ditadura midiática, a mandatária maior do país preferiu desafiar a lógica política. O enigma está posto e o maestro Nilson Lage (professor aposentado da UFSC) deu algumas pistas, em seu twitter: ‘Tia Dilma na festa da Folha é prova de feminina astúcia, de fragilidade confessa, de amnésia, de ingenuidade ou de falta de vergonha na cara…’
A ver.
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Docente da Universidade de Brasília, professor visitante na Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do objETHOS