Suscita múltiplas indagações a divulgação de mais de 250 mil telegramas diplomáticos dos EUA pelo WikiLeaks. Capitaneada pelo australiano Julian Assange, a organização objetiva combater, pela publicidade, más condutas governamentais de variável gravidade – da hipocrisia a crimes de guerra. Entre as muitas perguntas que cabe fazer a propósito desse caudaloso vazamento, menciono: é possível preservar o sigilo na era da revolução digital? Numa democracia existem limites aceitáveis à instantaneidade da transparência da conduta governamental? Qual é hoje o papel do sigilo na vida diplomática?
A possibilidade de resistir ao devassamento da vida privada, de preservar o sigilo de dados bancários e fiscais, de manter o segredo profissional e o sigilo de comunicações diplomáticas se viu significativamente reduzida pela tecnologia. Esta, com as inovações da revolução digital, ampliou enormemente a facilidade do acesso a documentos, a escala do seu armazenamento e a ubiquidade do potencial de sua divulgação por meio da internet. A manipulação clandestina de arquivos com suporte no papel era e é muito mais difícil do que a manipulação de arquivos de computador. Senhas e os múltiplos mecanismos de defesa, inclusive a encriptagem, voltados para preservar a intangibilidade dos arquivos de computador, enfrentam diariamente tanto os riscos de manipulação clandestina por seus usuários autorizados (que foi a base dos vazamentos do WikiLeaks) quanto a competência dos hackers. Esta é uma realidade tecnológica do século 21 que põe em questão a possibilidade do sigilo, mesmo em esferas em que é legalmente tutelado.
Numa democracia, no conceito do público, convergem tanto o que é do interesse da res publica quanto o que é acessível ao conhecimento de todos. O exercício em público do poder comum é uma das ‘regras do jogo’ da democracia, pois a transparência dá à cidadania a possibilidade de avaliar e controlar as decisões dos governantes, inclusive em matéria de política externa.
Atividade sigilosa
A batalha em prol da transparência do poder integra a agenda de combate ao Estado absolutista e ao segredo como componente do exercício do poder. Está ligada à afirmação que fez Kant, no Projeto da Paz Perpétua, sobre a publicidade como critério de julgar a moralidade e a crítica ao realismo político da razão de Estado que, para dominar, oculta informações. Neste encobrir se escondem tanto segredos – que podem ter a dimensão do aceitável – como mentiras.
A temática do acesso aos documentos contidos nos arquivos públicos é, assim, inerente aos regimes democráticos, pois informações disponíveis indefinidamente apenas para um limitado número de governantes não cabem numa democracia. Nesta, a publicidade e o acesso são a regra, que comporta certas derrogações que tornam o acesso pleno só possível depois do transcurso de um certo período de tempo. Essas exceções permitem qualificar como documentos originariamente sigilosos os que são imprescindíveis à segurança da sociedade e do Estado, para usar a linguagem da Constituição de 1988.
Naturalmente a classificação de documentos como sigilosos e sua subsequente desclassificação devem obedecer a critérios de razoabilidade e prudência, ligados ao interesse comum. Esses critérios sempre comportam uma margem de apreciação discricionária do poder público, que podem ser discutíveis na perspectiva da cidadania e do jornalismo investigativo de qualidade, cabendo ressaltar que hoje os guardados sigilosos nas arcas do Estado estão em arquivos de computadores, muito vulneráveis ao devassamento por obra da revolução digital e da ação dos internautas. É nessa moldura que cabe analisar o papel do sigilo na vida diplomática e o que significa o fenômeno WikiLeaks.
A diplomacia tem sua raiz na necessidade dos Estados e suas sociedades de se comunicarem e interagirem de maneira institucionalmente organizada. Tem hoje a complexidade que provém da dinâmica de um mundo globalizado, interdependente e heterogêneo, e de uma pauta que vai da paz, da guerra, da segurança, dos direitos humanos à cooperação financeira e à sustentabilidade ambiental. Tem os componentes de uma diplomacia aberta, advogada por Wilson no final da 1.ª Guerra, e os da diplomacia de combate político, com seus ingredientes de batalha ideológica, tão presentes, por exemplo, na guerra fria.
Se a diplomacia atual não é mais, como foi no passado, uma atividade preponderantemente sigilosa, convém que tenha facetas de uma atividade discreta, para o bom exercício de suas funções. Estas são basicamente a da representação do Estado, a da proteção dos seus interesses, incluído o dos seus nacionais no exterior, a negociação, a promoção econômica e cultural do país.
Luzes diárias
Todas essas funções requerem boa informação. Por isso o inteirar-se por todos os meios lícitos do que se passa num Estado ou numa organização internacional, para bem informar a sua Chancelaria, é da essência da atividade diplomática. Essa atividade de garimpagem deve ser discreta e seu resultado, transmitido por telegramas diplomáticos, comporta, para ser eficaz, uma certa liberdade de linguagem. Daí a frequente conveniência do sigilo, por um certo lapso de tempo, de muitas comunicações diplomáticas, para evitar constrangimentos e assegurar a uma missão diplomática a continuidade da sua essencial função de informar. É isso que, com boa-fé, justifica, numa democracia, a existência de certos limites à plena instantaneidade da transparência da atividade diplomática.
O grande mar de informações vazadas pelo WikiLeaks vem revelando condutas mais ou menos discutíveis. É, no entanto, e sobretudo, um precedente que, facilitado pela revolução digital, precariza a plenitude da atividade de informar, negociar e representar da função diplomática. Nem os seres humanos nem a atividade diplomática suportam, com facilidade, a instantaneidade diária das luzes da plena transparência.
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Professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Brasileira de Letras, foi ministro das Relações Exteriores no governo FHC