Entre mortos e feridos salvaram-se quase todos os principais jornais brasileiros na cobertura da eleição no Iraque.
O quase vai para O Globo, que no dia D matou o que se revelaria um grande acontecimento de verdade em uma pagineta e meia, sob o título borocochô ‘Democracia em conflito’ e um chapéu, ‘Nas mãos do terror’, que deixou claro, mesmo antes de se chegar às matérias que adiante tratavam do assunto, que o olhar global estava concentrado muito mais no refém brasileiro do que no eleitor (ou insurgente) iraquiano.
Já o Estadão e a Folha, nessa ordem, deram domingo dois decentes cadernos especiais.
No segundo caso, além do visual mais dramático, o forte foram, de um lado, as três entrevistas com dois americanos (um deles o general da reserva Brent Scowcroft, um dos bambas da corrente ‘realista’ da política exterior americana) e um sociólogo iraquiano; e de outro, as duas sólidas matérias da argentina Karen Marón, identificada no rodapé como ‘especialista na cobertura de conflitos armados’, que a Folha teve a sorte de descobrir em Bagdá (se é que foi sua a iniciativa) e a inteligência de passar a publicá-la regularmente.
No primeiro caso, cinco textos ‘estrangeiros’ (incluindo os dos correspondentes do Estado em Washington e Paris) deram mais ao leitor por seu dinheiro, por metro de profundidade, do que as matérias do enviado especial Roberto Lameirinhas (que viajou com o repórter fotográfico Juca Varela).
Teatro de operações
O que leva ao que aqui interessa a este leitor: a decisão de despachar os dois jornalistas para um teatro de operações – que é o nome apropriado para grande parte do Iraque, a começar de Bagdá – onde, segundo depoimentos de repórteres americanos e ingleses de primeiro time, é praticamente impossível apurar com independência qualquer coisa que mereça ser apurada.
De fato, quase todas as matérias de impacto sobre a ocupação do Iraque, do tipo Abu Ghraib, foram capturadas na América e na Grã-Bretanha. A exceção, se a memória não trai, foi a história do destino mal explicado de US$ 600 milhões que deveriam ajudar a reconstrução do Iraque. (US$ 50 milhões saíram sem deixar nem recibo.)
É bem verdade que veio do país ocupado a matéria mais importante do ciclo da guerra: a de que os americanos não conseguiram achar (e há pouco desistiram de procurar) as tais armas de destruição em massa de Saddam que serviram de pretexto para a invasão. Mas, neste caso, a notícia não foi produto do suor de um repórter garimpeiro, mas de um anúncio oficial do próprio responsável pela procura, aberto a todos os jornalistas credenciados pelos gringos.
Durante a invasão, o enviado da Folha, Sérgio Dávila, fez um trabalho de gente grande, aproximando o leitor do infernal dia-a-dia do Iraque atacado. Passados 20 meses da guerra-guerra propriamente dita, o público brasileiro interessado foi tendo contato constante com as realidades iraquianas mais ao alcance dos repórteres, fotógrafos e cinegrafistas dos canais de mídia do exterior de quem periódicos e emissoras nacionais compram material.
A esta altura portanto, não seria razoável esperar que jornalistas brasileiros mandados para cobrir a eleição iraquiana pudessem enviar qualquer coisa que não fosse ‘cor local’ – desbotada. Exemplos:
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‘Para entrar no país viajantes têm de pagar propina a funcionário’ (Estado, 26/1).**
‘Só tiros quebram o silêncio sinistro da cidade sob toque de recolher’ (27/1).**
‘Um sorridente vendedor de rua que não fala de política, obras para restaurar calçadas, trânsito intenso, filas nos postos: Bagdá resiste’ (28/1).**
‘Padeiro dá receita de pão crocante. Para ficar bom, o profissional tem de gostar do que faz e estar feliz, ensina Zaidi em sua padaria de 4mx4m’ (29/1).Se é isso que o jornal considera estar ‘no centro do voto e da guerra’ – como diz o título do box vanglorioso informando que os enviados especiais ‘vão cobrir os últimos dias da campanha, a violentíssima reação dos insurgentes para impedir as eleições…’ – tem algo de errado aí.
Ou essa pauta é para conversa para leitor dormir ou é areia demais para o caminhãozinho do repórter do Estadão, como seria também de outro, dos demais jornais brasileiros. O New York Times tem sete repórteres circulando pelo Iraque e ainda recorre a frilas (para fotos) e a estagiários locais (para textos e apoio).
Entre esses repórteres está, por exemplo, John F. Burns, em Bagdá desde os tempos de Saddam. Ele é um dos velhos de guerra na praça, formando uma trinca de ases de ouro com Robert Fisk, do Independent de Londres, e John Simpson, da BBC. O que essa gente não sabe sobre o Iraque não vale a pena saber.
Tanto pior para o leitor se o espaço ocupado pelas matérias ‘com olhar brasileiro’ ou pelas side stories dos enviados especiais do jornal paulista deixa pouco ou nenhum lugar para as matérias hard ou inside stories daquele gênero de jornalista – verdadeiros veteranos. (A Folha salvou a honra com as matérias quentes da argentina Marón, a tal da especialista em conflitos armados.)
Dançam também, por falta de espaço, muitas das análises e comentários das melhores procedências que o jornal, para estar à altura de sua própria tradição, deveria dar aos seus leitores – mesmo sabendo que uma parte deles decerto prefere aprender como se faz um pão árabe crocante a entender a tragédia iraquiana.
[Texto fechado às 16h43 de 31/1]