SADDAM EXECUTADO
Sobre o quê e sobre quem falar?, 7/01/07
‘O mal das férias é esse, a gente se acostuma a fazer nada e o retorno à realidade é doloroso. Desde antes do Natal, fui separando alguns assuntos que poderiam dar uma coluna. Mas naquela confusão de papéis amassados e rasgados, depois da glória efêmera de embrulharem presentes, meus recortes de jornal devem ter ido junto para o lixo.
O jeito é confiar na memória, mas será que funciona cérebro acostumado a acordar tarde, nestas duas últimas semanas sem escolas para as crianças, e a descartar tudo quanto pudesse comprometer a alegria de um Natal ateu e da expectativa daquela fração de momento, que separa as desilusões e desesperanças de um ano velho das esperanças de um ano novo?
Ah, pelo menos de uma coisa me lembro, desta vez não havia neve e nem eu tiritava de frio, diante da catedral protestante de Berna, ponto de encontro da população desejosa de passar o ano na rua, a grande maioria com uma sacola transportando o champagne e os copos para si ou para a família. Nenhum copo a mais para os desconhecidos, como eu, mesmo acompanhado de belas adolescentes, minhas filhas.
Vivemos uma época de extremo individualismo, também chamado de capitalismo selvagem, onde não sobra espaço para os outros. Bom, aqui na Europa, o inferno são os outros, quem sabe no Brasil seria diferente, porém se eu estivesse esperando as badaladas da meia-noite diante da Sé, em São Paulo, talvez nem pudesse dar um bicada num champagne nacional e ainda ficasse sem a carteira.
Quem não chegou a começar o ano foi o Sadam Hussein, e sua morte, filmada pela moderna tecnologia do celular, foi num clima medieval. Por sua vez, o novo secretário-geral da ONU, cujo nome ainda não decorei, destoou na primeira fala, sem condenar a pena de morte como todos esperavam e, apesar de já ter sido depois do Natal, sua reação de funcionário onusiano, pareceu mais gesto de vaca de presépio.
Por que mataram Sadam meio na correria, deixando de lado outros processos, como os esperados pelos curdos ? Elementar, como diria o discreto amante de Sherlock Holmes – se houvesse processo sobre o uso de gás letal contra os curdos, se saberia que, naquela época, os EUA apoiavam o assassino Sadam, agora mártir, e forneciam tudo quanto o ditador precisasse na luta contra os iranianos. Alguns jornais publicaram mesmo fotos de Donald Rumsfeld naquela fase de namoro com Sadam.
E hoje mesmo se anuncia já terem morrido mais de três mil soldados americanos na guerra de invasão e ocupação do Iraque pelo mesmo Rumsfeld. Será que haverá tribunal de guerra para ele e seu chefe Bush ? Podemos esperar alguma coisa boa neste 2007 ?
O tempo esquentou, já não há mais neve no inverno europeu, o secretário-geral da ONU parece frouxo, assassinos matam um assassino em nome de uma justiça imposta por invasores. Lá fora – ainda bem que os termômetros são positivos neste inverno europeu – há franceses sem domicílio fixo, dormindo em mini-tendas à beira de um canal, como cachorros sem dono.
Aqui na Suíça, os bancos fecharam o ano com lucros estrondosos. A moeda européia, o euro, está forte mas o custo de vida mostrou um Natal sem as despesas dos anos anteriores. Todo mundo aperta o cinto, como se houvesse uma crise, mas não há. É a racionalização dos serviços, a globalização e a exigência de lucros incessantes, feitas pelos investidores acionistas aos dirigentes de empresas, nas bolsas de valores. A classe média européia não tem o mesmo poder de compra, existe no ar o medo do desemprego, os governos falam em aposentadoria aos 67 ou 70 anos, os bascos voltam a soltar bombas no lugar dos islamitas, que nos consideram infiéis, mas que por enquanto estão ocupados entre eles, sunitas contra xiitas.
Só nos resta o sorriso de Ségolène Royal, cuja voz charmosa promete mudar a França. Será que vão deixar ? Ah, como foram boas minhas duas semanas de férias!’
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