Texto publicado originalmente pelo objETHOS.
Costuma-se atribuir aos autores do Novo Jornalismo, a despeito de toda a excelência que obtêm no texto, certa inclinação a exagerar ou mesmo inventar fatos em prol de uma narrativa com viés literário. Usa-se e abusa-se de descrições pormenorizadas, personagens são trazidos à luz sem que tenham sido de fato entrevistados, como se fossem heróis ou anti-heróis criados a partir da mente criativa do autor ou a partir da fala subjetiva de terceiros. Detalhes aparentemente insignificantes — a cor da roupa e os trejeitos do protagonista, a ambientação dos cenários, a atmosfera reinante — são descritos em seus pormenores para construir uma verossimilhança que muitas vezes transcende à realidade.
A matéria de capa do jornalista Thiago Bronzatto para a revista Veja do último dia 4 de maio parece querer beber dessa tradição. Tal qual o monólogo interior de um detetive de filme noir, o jornalista abre o texto como se fizesse parte de um plano-sequência de cinema, prefigurando no leitor o suspense necessário sobre algo recôndito que estaria por se desvelar. Algo que só o narrador, imbuído de audácia investigativa, poderia descortinar. “O elevador para no 3º andar do prédio da Superintendência da Polícia Federal em Curitiba. Quando se sai dele, à esquerda, um agente fardado, com uma espingarda calibre 12 em punho, impede o acesso à escada de incêndio”. Fazendo uso da primeira pessoa e lançando mão de medidas exatas (espingarda calibre 12, 3º andar do prédio, cela de 15 metros quadrados, 22 presos, 7 horas) para denotar precisão, o jornalista quer nos convencer de que, de fato, esteve lá, a despeito de o acesso ser permitido “somente a pessoas autorizadas”, alerta ele. Sua missão: contar como está sendo a vida no cárcere do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, preso há um mês no prédio da Superintendência da Polícia Federal em Curitiba.
Para tanto, dá detalhes de uma “rotina especial” a qual só Veja teria obtido acesso com exclusividade: a cela, as roupas, a comida, os banhos de sol, os exercícios físicos, as leituras etc. A matéria reproduz até as conversas de Lula com os advogados e os chistes dirigidos aos policiais que o vigiam.
A partir da edição seletiva de tais falas — se elas de fato ocorreram! — vemos a construção de um perfil cujas tintas preconceituosas e reducionistas estão em todas as facetas do ex-presidente que Veja quer destacar. Alguns exemplos eloquentes dessa conduta subliminar: sobre a rotina de exercícios e seu pedido por uma bola usada em sessões de pilates para combater o estresse, o texto faz alusão a uma hipotética brincadeira de Lula dizendo que dentro da bola poderia vir uma mulher. Sobre o fato de Lula ter solicitado à Justiça um frigobar para tomar água gelada, a revista comentou novamente o “bom-humor” do ex-presidente, destacando o que ele teria dito: “fala para a juíza liberar o frigobar com uma cervejinha”. No tocante à limpeza da cela de 15 metros quadrados, diz que “diferentemente do que fazem seus colegas presidiários, Lula não limpa o banheiro, não varre o chão nem recolhe o lixo da cela”. Quando o assunto são os livros que o ex-presidente estaria lendo, comenta jocosamente: “A leitura nunca esteve entre os hábitos prediletos do ex-presidente”.
O perfil traçado por Veja sobre Lula revela um ex-presidente: no primeiro caso, mulherengo; no segundo, alcoólatra; no terceiro, indolente; no quarto, iletrado. Soma-se a essas facetas, a de ingrato com relação aos seus correligionários, uma vez que, segundo Veja, Lula teria dito que a ex-presidente Dilma Rousseff não soube governar direito e que a presidente do PT, senadora Gleisi Hoffmann, teria sido incompetente.
O curioso é que Veja, ao reconstituir o cotidiano do primeiro mês de Lula na prisão, tenha ventilado apenas as observações do ex-presidente (se de fato ocorreram!) que bem poderiam estar em um editorial da própria revista. Falas descontextualizadas, tendenciosas, oportunistas, parecendo às vezes forjadas, ouvidas sabem-se lá por quem e com que interesse, obtidas através da infiltração pouco esclarecida de um repórter que nem sequer cita uma fonte fidedigna com nome e sobrenome. Oculta-se na ideia de um jornalismo investigativo que, quando bem aplicado, recorre sim a fontes oficiosas (aquelas que pertencem a uma instituição oficial, mas não falam por ela, recorrendo ao off). Não é o caso aqui! O texto que ora se analisa parece mais um simulacro de Novo Jornalismo, com um teor palatável e pseudo-fidedigno, mas que não passa de propaganda ideológica para atender interesses político-partidários ou empresariais. Algo que Veja sempre fez e sempre fará se não for devidamente brecada.
A verdade encarcerada
Tudo que se disse acima a respeito da prática nefasta de Veja sobre as seleções e angulagens já seria absolutamente condenável não fosse por algo ainda mais significativo. Nem tudo que diz a revista parece ser verdade. Na última sexta-feira, dia 4, a Polícia Federal veio a público para esclarecer aquilo que já se suspeitava: a referida reportagem de capa está repleta de “informações equivocadas e imprecisas”. Sobre outro atributo imputado ao perfil do ex-presidente (de que, além de mulherengo, alcoólatra, indolente, iletrado, seria doente), a PF esclarece: “É absolutamente falso, por exemplo, que seja administrada insulina ao custodiado”. De fato, em matéria publicada na edição desta semana (16 de maio), Veja teve que admitir que Lula não recebera tal dose de insulina e que, em vez disso, “foi submetido a uma medição da taxa de glicose, por causa do diabetes”.
A nota de esclarecimento da PF destaca também que “minucioso exame das imagens de circuito interno de segurança permite verificar que o autor da matéria não teve acesso à área restrita ao Ex-Presidente”, embora o jornalista da matéria tenha estado no edifício da Superintendência Regional onde teria participado de uma reunião com um servidor que não possui relação com quaisquer procedimentos relacionados à custódia.
Com base no que considerou uma violação da intimidade do ex-presidente Lula, o deputado Paulo Pimenta (RS), líder do PT na Câmara, ajuizou pedido de convocação, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), do ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, para explicar o ocorrido. Para Pimenta, caso a permissão de entrada de repórter no cárcere seja confirmada, trata-se de “fato de gravidade ímpar”. No requerimento de convocação, que precisa ser aprovado por maioria na CCJ, Pimenta diz também que a revista “expõe publicamente, de maneira sensacionalista, as condições internas da prisão onde se encontra o presidente Lula, violando, indevidamente, sua intimidade”.
Tentando desviar o foco sobre seus “métodos” de investigação, Veja, em matéria desta semana intitulada “Agentes sob pressão”, acusa a Polícia Federal de “falhar clamorosamente na segurança de Lula” e afirma que o comunicado da PF “tenta ludibriar a plateia”. Mas quem parece querer ludibriar a audiência e estar sob pressão, por conta da dificuldade em explicar suas próprias falhas, é a revista.
Não contente em ser uma das responsáveis pelo golpe ocorrido em 2016, que destituiu uma presidenta legitimamente eleita, e, posteriormente, ter sido uma das vozes a conduzir Lula ao cárcere, Veja pretende agora dissecar o que considera um cadáver. Mas não pode deixar de mencionar, ainda que sob a ressalva de que ninguém está acima da lei, de que (palavras dela!) “jamais encarceraram um ex-presidente que, ao mesmo tempo em que é pilhado em corrupção, é também o preferido dos eleitores”. Entretanto, verdade assim tão contundente — a de que Lula lideraria as pesquisas mesmo estando preso — parece ser apenas um detalhe na revoada inventiva de cenários, falas e situações trazidas pelo jornalista Thiago Bronzatto.
Fala-se muito na proliferação nociva de fake news como se ela fosse fruto exclusivo dos ambientes digitais, em particular das redes sociais. Seminários e rodas de conversa são patrocinados pela grande mídia tradicional no intuito de combatê-las. A própria Veja organizou, no último dia 24 de abril, evento intitulado “Amarelas ao vivo” em que 10 entrevistados seriam ouvidos “sobre como as redes sociais e as fake news vão afetar as eleições, o Brasil e você”. Entretanto, a matéria falaciosa aqui analisada revela que Veja, no intuito de, sim, “afetar as eleições, o Brasil e você”, angula a realidade, distorce a verdade e fabrica fatos tão falsos quanto a legitimidade de Temer, que não só não está encarcerado como usufrui livremente do poder.
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Jeana Laura da Cunha Santos é pós-doutoranda no POSJOR/UFSC e pesquisadora do objETHOS.