Em meio ao atual debate sobre as grandes mídias, não deixa de ser de certa forma curioso que as maiores críticas à imprensa estejam restritamente voltadas àquela de perfil mais clássico, que pressupõe a centralidade da política na esfera pública. O objetivo aqui não é afirmar que tais críticas e debates não sejam pertinentes. É tão-só uma tentativa de chamar a atenção sobre a necessidade de se refletir sobre uma outra tendência paradigmática do jornalismo contemporâneo que, em aliança com representativos segmentos da vida cultural e econômica, constrói uma esfera pública cada vez mais centrada no consumo, nos temas da vida íntima e privada e na produção de realidades estrategicamente construídas para fins de comunicação.
Muito embora esse jornalismo de tendência contemporânea tenha características comuns e entrelaçadas com o viés de tipo mais clássico, nos debates sobre a imprensa costuma não ser levado muito em conta, nem muito a sério, ainda que tenha enorme penetração social.
Caminhando pelas ruas da Tijuca e do Flamengo, no Rio de Janeiro, decidi perguntar aos jornaleiros quais eram as revistas mais vendidas em suas bancas. Todos afirmaram que publicações como Caras, Quem, Contigo, Marie Claire, Flash, 7 dias, Viva! e outras revistas congêneres compunham o nicho editorial com maior força de venda em suas bancas, sendo Caras a mais citada como a de maior saída. Certamente, essa pesquisa informal não tem valor estatístico algum, mas, de alguma forma, indica a força desse mercado editorial.
No caso da revista Caras, o que chama efetivamente a atenção é a sua capacidade paradigmática de fabricação de realidades em meio a castelos, ilhas e outros cenários glamourosos e paradisíacos. Até porque para ‘flagrar’ (?) cenas do cotidiano de um(a) colunável ou celebridade, a revista pode não mobilizar apenas repórter e fotógrafo, ou um paparazzo. Ao molde dos espetáculos, desloca – como informam Raquel Paiva e Muniz Sodré, em Cidade dos Artistas – uma equipe de produção inteira (com maquiador, figurinista, cenógrafo, iluminador) a fim de caracterizar idealmente as personagens e construir adequadamente as cenas e cenários das histórias que decidem contar. Ou seja, constroem ou adaptam a realidade em função do que querem dizer.
Estilo Quem
O corte ficcional de tais reportagens é tão presente que Paiva e Sodré constatam que até mesmo castelos e ilhas, por mais que possam pertencer concretamente à realidade histórica, não passam de cenografia. Os personagens, cenas e cenários funcionam, na verdade, como símbolos atualizados de uma narrativa que se resvala para as mitologias que giram em torno de cinderelas, príncipes, heróis, glórias, romances etc.
É verdade que, no nicho editorial apontado como ‘forte’ pelos jornaleiros que abordei, nem todas as revistas se utilizam exatamente das mesmas estratégias ou mecanismos de produção. Mas a maioria costuma apostar em capas com celebridades midiáticas que chamam para matérias que falam sobre algum aspecto de si mesmas em meio a fotos e textos que acabam por vinculá-las a produtos, comportamentos e/ou hábitos de consumo. A edição 375 (8/12/2006) da revista Viva!, da Editora Abril, por exemplo, traz na capa a atriz Juliana Paes e a seguinte manchete: ‘Tinja e alise ao mesmo tempo! Tintura + escova progressiva = cabelo bonito e saudável!’. No miolo da revista, a matéria estampa foto da atriz em meio a outras de cosméticos capilares, além de um texto que garante que, com os devidos cuidados, ‘você também pode!’ chegar aos mesmos resultados que Paes.
Já a Quem, da Editora Globo, exibe em sua versão online o seu modo de entrelaçar produção cultural e mercado. Na matéria ‘O sonho de Cláudia Raia’, que ‘está em cartaz em São Paulo com o musical Sweet Charity’, a entrevista é centrada em perguntas como: ‘Como é interpretar Charity, uma mulher tão frágil, que parece ser o seu oposto?’; ‘Qual conselho você daria a mulheres como Charity?’; ‘Quando a Sophia (sua filha) entrou na história?’; ‘Você emendou uma novela, Belíssima, com o musical. Como ficou a vida em família?’
A chave do negócio
A matéria prossegue com ‘imagens exclusivas dos bastidores do ensaio de Cláudia Raia’, com ela sempre em primeiro plano, e ainda com um outro ‘ensaio fotográfico’, onde posa com vestidos e acessórios de grifes em que uma bolsa de 13.700 reais salta aos olhos. Ou seja, no contexto da revista o grande produto cultural e simbólico não é exatamente a peça, e sim Cláudia Raia, a pessoa dela, e os vestidos e acessórios do merchandising. A peça mais parece um penduricalho glamouroso que serve de gancho para que ela, produto simbólico maior, fale de si e da experiência pessoal que é protagonizá-la, ou ainda de pano de fundo que inspira a simbologia das cenas mercadológicas.
Adiciona-se a estas questões que atravessam jornalismo, cultura e consumo, o fato de que a construção de celebridades em alta, com grande capacidade de vender produtos e revistas e de criar ondas que fazem recair o interesse sobre si, rotineiramente, passa por estratégias de visibilidade midiática e de exposição da vida íntima e privada. Tal visibilidade é viabilizada e sustentada pelo colunismo social e de fofoca, por diversas editorias de jornais, sites, veículos especializados, programas televisivos, enfim por uma entrelaçada rede jornalística e de entretenimento.
Como a visibilidade não é fácil, mas é a chave do negócio, diversos artifícios, uns mais sóbrios e outros mais ousados, muitas vezes se fazem necessários para que a imagem e o nome continuem estampados nas mídias. Até porque existem muitos candidatos a celebridade na fila a fim de cavar um espaço e botar a fila para andar. Depreende-se também, por outro lado, que as mídias precisam alimentar a produção de celebridades, já que elas parecem ser produto simbólico privilegiado na alavanca do consumo.
Duas propostas
E assim, entre a realidade, a ficção, o artifício e o forjamento de ‘realidades’ capazes de gerar notícias, fotos e notinhas, vão sendo movimentadas algumas das peças principais que movimentam a indústria cultural – o jornalismo, o consumo, o entretenimento, a celebridade, as assessorias de imprensa e de marketing, etc.
A cobertura das eleições e dos escândalos envolvendo o governo e o PT colocou, como já é mais do que sabido, a imprensa de viés mais clássico e as grandes mídias na pauta das discussões públicas. Segmentos não-conformados com certos princípios e práticas preconizadas por elas já não escondem que não depositam esperanças sobre os grandes grupos de comunicação, nem sobre a fatia da imprensa a eles alinhada. A negação de seus construtos simbólicos – sob a alegação de que se atêm apenas aos ‘fatos reais’ – vem dificultando maiores possibilidades de diálogo. E aumentando o tamanho do fosso que separa as grandes mídias e seus aliados daqueles não crêem nem na neutralidade das versões, nem no projeto implícito nas versões midiáticas, que inclui a regulação pelo mercado de todos os âmbitos da vida, projeto não muito difícil de atestar quando se observa o argumento da maioria dos colunistas que escreve nos espaços nobres da grande imprensa.
Propostas contra ‘o monopólio da palavra’ ou pela ‘democratização da comunicação’ começam a surgir em meio às críticas amplificadas a partir do processo eleitoral. Bernardo Kucinski, por exemplo, fala sobre a necessidade de criação de ‘uma espécie de Lei Rouanet específica para projetos de imprensa escrita, internet e rádios comunitárias’ a fim de incentivar ‘a imprensa pequena, regional, alternativa e cultural (…) que não tem como objetivo principal o lucro’ (Folha de S. Paulo, 8/12/2006). Outros, como Venício A. de Lima, vislumbram ventos promissores a partir de possíveis desdobramentos do Fórum Nacional de TVs Públicas, que se realizará em fevereiro, de iniciativa, não por acaso, do Ministério da Cultura, como explicou em entrevista ao site Conversa Afiada.
Universo complexo
Não deixa de ser, contudo, curioso que o viés do jornalismo voltado aos segmentos do entretenimento, cultura e consumo, que pressupõe uma esfera pública centrada na vida íntima e privada, continue um tanto quanto livre da observação crítica. Parece até que esse nicho do jornalismo não faz parte da imprensa e que, por isso, está fora da discussão, muito embora as propostas de ‘democratização da comunicação’ tangenciem a cultura; muito embora os veículos de comunicação sejam indústrias culturais; muito embora as maiores reclamações contra o jornalismo de viés clássico digam respeito à exacerbação de produção simbólica e às construções e adaptações da ‘realidade’ que visam contar; muito embora os atores da política, tal como as celebridades (e candidatos a), também utilizem mil e um artifícios a fim de gerar notícias…
A ausência de maiores observações críticas em relação ao paradigmático jornalismo centrado nas esferas íntima e privada talvez ocorra em função da banalidade da maior parte de seus conteúdos. Só que esta banalidade está longe de significar inexistência de conseqüências históricas – culturais, sociais, morais e éticas. E quando o atual debate sobre as mídias começa a querer parar de engatinhar para alçar o campo das propostas (que têm esbarrado na cultura, o que era de se esperar), algumas indagações começam a ser inevitáveis.
Quais são os pressupostos culturais que sustentam as propostas que começam a se delinear? Como a proposta de lei de incentivo à ‘imprensa alternativa’ pretende construir relacionamentos entre imprensa (alternativa), mercado e cultura? O que se pretende: uma transformação quantitativa ou qualitativa? Se a Lei Rouanet não consegue barrar os que têm o lucro como objetivo principal, a lei de incentivo à imprensa o fará? Como? Uma série de outras perguntas poderia aqui ser feita. Mas o fundamental a dizer por ora é que imprensa, política e cultura compõem um universo complexo e atravessado, que abrange um leque de discussões que precisam começar a vir criticamente a público, até para que se entenda melhor o teor das propostas que se alinhavam.
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Jornalista, mestre em Comunicação, atriz, Rio de Janeiro