Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Doses de ceticismo responsável

Em meio a tantas certezas, tanta exaltação e tanto fanatismo, que tal estas hipotéticas questões: e se o governo e a mídia estiverem igualmente errados?


O que aconteceria se Sócrates ressuscitado descesse de paraquedas na Praça dos Três Poderes, Brasília, DF, para lembrar ao presidente Lula que na sua lapela está sempre a miniatura do brasão da República brasileira e não a de um partido político? E se o pai da filosofia, mártir da liberdade de pensar, se voltasse para o reportariado aglomerado à sua volta e proclamasse que a verdade para ser aceita precisa soar como verdadeira?


Serenariam os ânimos? Uma coisa não deve ser esquecida, bravos guerreiros: o país cansou de rupturas. O vale-tudo, hoje, vale nada. É coisa de ‘paiséco’, republiqueta.


Amarelo e marrom


Quem tem razão é este maravilhoso exemplar da alma latino-americana chamado José Mujica, presidente da República Oriental do Uruguai. Perguntado pelo repórter da Veja (29/9, págs. 19-23) sobre o que deve fazer um governante quando é criticado pela imprensa, ponderou:




‘[Deve fazer] Nada. Deve suportar. Se reagir perde duas vezes, porque será atacado de novo. Tem de olhar para o outro lado.’


E acrescentou:




‘Jornalistas devem tentar atuar com honra. Depois, cada leitor ou telespectador deve interpretar o que leu ou ouviu. Quanto mais educada e qualificada for a população, maior diversidade haverá de opiniões, o é que muito bom.’


E mais:




‘Quando um governo se mostra mais tolerante à diversidade, acaba ajudando a formar uma imprensa respeitosa. Quando radicaliza nas suas políticas, no entanto, aí vai tudo pro diabo. Nesse caso, a imprensa se transforma em uma espada de luta e a coisa fica perigosa.’


Sócrates, o filósofo redivivo, teria aplaudido com entusiasmo. Como certamente aprovaria este comentário escrito no Estado de S.Paulo (25/9, pág. A-31) pelo argentino Eduardo Bertoni:




‘Os cidadãos estão perdendo a confiança nos meios de comunicação. De um lado, a imprensa é responsável perante o cidadão, motivo pelo qual o estabelecimento de padrões éticos ou profissionais pelo governo deve ser repudiado. Mas, de outra parte, esta perda de confiança beneficia os governos que querem levar à censura ou autocensura.


‘Os jornalistas latino-americanos não podem correr o risco de perder a confiança do seu aliado mais natural. Se isso ocorrer, os governos se sentirão livres para agir contra a imprensa. Se essas medidas se consolidarem, não só perderemos um direito fundamental, mas a democracia estará correndo riscos.’


Eduardo Bertoni não é jornalista, é um acadêmico, diretor do Centro de Estudos de Liberdade de Expressão da Universidade de Palermo, Buenos Aires. Tocou numa questão crucial que serve à realidade portenha e encaixa-se perfeitamente na situação brasileira: o jornalismo investigativo não pode ser confundido com panfletagem. A apresentação de denúncias tem regras rígidas: primeiro os fatos, depois as inferências. Primeiro a malfeitoria, o malfeitor, depois seus eventuais cúmplices ou protetores.


O inverso é cavilação, diabólico artifício para acender os holofotes antes do circo de horrores. Isso é um tipo de jornalismo que no mundo anglo-saxônico é designado como ‘amarelo’ (yellow press) e aqui escureceu, tornou-se marrom. Uma imprensa que não faz questão de parecer confiável jamais conseguirá mobilizar os leitores em sua defesa.


Ou como disse o presidente-agricultor do Uruguai: jornalistas devem atuar com honra. Honra, no caso, não equivale apenas à probidade, é sinônimo de consciência, de dignidade profissional.


Certezas desnorteadas


O presidente Lula afirmou na entrevista ao portal Terra que tem o direito de tomar partido, fazer propaganda, subir no palanque. Está errado. E com isso legitimou o palanquismo jornalístico.


Mas o presidente estava certo, certíssimo, quando denunciou as poucas famílias que dominam numa mesma região, jornais, rádios e TVs. No entusiasmo retórico, não lembrou do caso da família Sarney, que além de jornais, rádios e TVs é dona do Amapá e do Maranhão inteiros. Neste último controla até o Judiciário, o que lhe garante eterna impunidade. E, não satisfeita com este imenso poder, a família é dona do Legislativo federal.


E por que razão a mídia não destacou a denúncia presidencial que atinge em cheio o seu mais forte aliado político? Porque nossa mídia não quer ouvir falar em desconcentrar os meios de comunicação, mesmo nas cidades de pequeno ou médio porte, e mesmo sabendo que nos Estados Unidos existe há mais de 70 anos uma agência cuja missão primordial é evitar ou neutralizar a propriedade cruzada.


Em meio às desvairadas certezas, falta apenas uma boa dose de ceticismo. Com pitadas de ironia.


 


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