Há pouco mais de um ano, os ventos da chamada “Primavera Árabe” sopram sobre a Síria. As forças de oposição ao regime da família al-Assad, que governa o país há 40 anos, apoiadas por forte mobilização popular, tentam colocar um ponto final em mais uma ditadura naquela região do planeta. As duas principais redes de televisão aberta do Brasil (Globo e Band) têm discursos e categorizações bem distintas sobre o regime e a personagem central, Bashar al-Assad. A Globo o trata cerimoniosamente de “presidente”, enquanto a Band já adotou, há bastante tempo, a alcunha de “ditador”.
Para fins desta breve reflexão, vamos observar como o fato foi noticiado no emblemático dia 15 de março, um ano após o começo das manifestações populares contra o regime al-Assad. Por ora, há divergências quanto ao número de vítimas: ONGs e entidades de oposição trabalham com o número de 8,5 mil sírios mortos pelas tropas leais ao ditador, desde março de 2011, enquanto a Cruz Vermelha Internacional e as Organizações das Nações Unidas (ONU) trabalham com dados de 7,5 mil mortos nas províncias de Homs, Hama, Idlib, Aleppo, Deraa e na capital Damasco.
A população e as forças de oposição ao regime reivindicam reformas políticas e a renúncia do ditador Bashar al-Assad.
Os discursos dos telejornais
“A revolta popular por liberdade política na Síria completa um ano com um saldo trágico. A repressão aos opositores do ditador Bashar al-Assad [grifo nosso] deixou até agora – segundo a ONU – mais de oito mil mortos”, enunciou o apresentador Ricardo Boechat na edição de 15/3 do Jornal da Band. O telejornal da Rede Bandeirantes assume um número que é da oposição ao regime de al-Assad. A narrativa da correspondente da emissora na Europa, Sônia Blota, não deixa dúvidas quanto ao posicionamento da emissora (na mesma edição):
“Repressão violenta. Essa é a tática usada pelo regime da Síria para enfrentar sua Primavera Árabe. A onda de revoltas populares no Oriente Médio e no Norte da África derrubou longas ditaduras no Egito, na Líbia, no Iêmen e na Tunísia. Depois que os protestos tomaram as ruas sírias e viraram alvo principal das tropas do ditador Bashar al-Assad, soldados do exército começaram a desertar e se uniram num contingente paralelo que tenta enfrentar os militares leais ao governo. (…) Bashar al-Assad lidera o regime sírio há 11 anos. Ele substituiu o pai Hafez que tomou o poder em 1963.”
Enquanto isso, no Jornal Nacional (TV Globo, 15/03/2012), na mesma noite, o fato era contado com outro viés político. A reportagem foi assim enunciada pelos jornalistas Patrícia Poeta e Márcio Gomes: “O movimento popular que exige a renúncia do presidente da Síria, Bashar al-Assad, completou hoje um ano. Segundo a ONU, mais de 8 mil pessoas foram mortas na repressão [grifos nossos] aos opositores.”. O texto de Carlos de Lannoy, que cobre o conflito a partir de Jerusalém (Israel), reforça esse enfoque:
“Um dos redutos da oposição, a cidade de Hama, não celebrou o aniversário do movimento anti-Bashar al-Assad. Ela foi bombardeada pelas tropas do regime. Em Holms, muitos tiros foram ouvidos. Já a TV estatal mostrou milhares de pessoas em Damasco, numa grande manifestação de apoio ao presidente [grifo nosso]. Opositores disseram que estudantes e servidores foram coagidos a participar da manifestação, que ocorreu um dia depois da revelação de e-mails supostamente enviados pela família Assad.”
Note-se que al-Assad continua tendo o tratamento de “presidente”, tanto no enunciado quanto na reportagem. Os oito mil mortos denunciados pela ONU, para os jornalistas da TV Globo foram vítimas da “repressão aos opositores” – por um sujeito indefinido, resultado de exercício retórico que tem uma clara intenção: sublimar a responsabilidade política da ditadura. Neste caso, temos um mesmo fato político sendo reportado a partir de dois olhares sobre o núcleo central da notícia: a repressão do regime de Bashar al-Assad aos seus opositores. No âmbito da ONU, a ditadura se ampara nos vetos da Rússia e China às sanções do Conselho de Segurança.
Capricho, ilusão
Nas telas dos dois principais telejornais do país, um exemplo claro de representação sociopolítica da notícia, essa matéria-prima tão essencial ao jornalismo como forma social de conhecimento que pode revelar pistas da dimensão histórica dos fatos, a partir do singular da vida, ou fazer um discurso totalmente estranho à verdade factual.
Na metáfora sobre a “verdade”, o poeta Carlos Drummond de Andrade a percebe como algo formado por duas metades que não se encaixam e vaticina:
“Chegou-se a discutir qual a metade mais bela/ Nenhuma das duas era totalmente bela./ E carecia optar. Cada um optou conforme/ seu capricho, sua ilusão, sua miopia”.
Os dois telejornais fizeram suas escolhas…
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[Samuel Lima é docente da UnB, professor visitante na UFSC e pesquisador do objETHOS]