Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

É hora de abaixar o topete, mas de levantar a cabeça

John Cheever é um dos escritores que mais entenderam a vida da classe média americana. Seus contos são relatos precisos sobre o que significa ter muitas expectativas e somente algumas realizações. Se você gosta de TV, vale dizer que Cheever foi exaustivamente lido pela equipe que criou Mad Men, uma das séries mais aclamadas pela crítica nos últimos anos. Ele tinha uma enorme capacidade para captar pequenos movimentos de grande significado.

Cheever também é um dos escritores americanos que mais entenderam a mídia – até porque mídia é central para uma vida de classe média. Um dos meus contos favoritos dele se chama The Enormous Radio. Cheever descreve, de forma magnética, a vida de um homem e de uma mulher diante daquele aparelho de metal e madeira. É impressionante ler sobre o poder do rádio dentro de um apartamento americano nos anos 50. Aquele som cheio de ranhuras conectava a casa ao mundo.

Esse conto é uma excelente reflexão sobre a mídia porque mostra, de uma maneira simples e poderosa, o valor que os veículos tradicionais trouxeram para a nossa vida. Jornais, revistas, rádios e TVs nos informaram sobre os grandes assuntos que têm impactos gigantescos em nossas vidas. Eles nos aproximaram da realidade de pessoas que vivem tão perto de nós – apesar de serem tão diferentes. Eles foram as primeiras janelas para o mundo e concentraram atenção proporcional a essa relevância.

O mundo em telas

Com a passagem do tempo, a oferta de mídia aumentou e, ao mesmo tempo, se fragmentou. Há mais veículos de mídia e mais plataformas para consumir essa mídia. Porém, a informação não vem mais em um pacote fechado. Quando você comprava um jornal ou uma revista, a mesma empresa controlava a produção da notícia, a impressão e a distribuição. No caso de rádio e TV, elas controlavam a produção e a distribuição do conteúdo – você só precisava escolher o aparelho. Era um mundo de atenção concentrada, que produziu grandes empresas. Elas tinham oligopólios de atenção.

Hoje, as pessoas continuam procurando informação, mas muitas reportagens simplesmente chegam até elas por canais que não produzem conteúdo – mas que têm a atenção dos seus usuários. O Google, o Facebook, o Twitter, o YouTube não produzem conteúdo – são plataformas que servem para encontrar e distribuir conteúdo, e representam novos oligopólios de atenção.

Apesar de algumas pesquisas apresentarem dados desencontrados, já dá para dizer que boa parte das pessoas usa plataformas digitais, incluindo as redes sociais, como primeira fonte para encontrar conteúdo. O Facebook é o rádio de John Cheever. É o jornal lido exaustivamente no trem. É a TV na sala de uma família dos anos 50.

A atenção migrou das plataformas integradas de produção e distribuição para as plataformas de distribuição e interação. A gráfica e o caminhão, a antena e a mesa de centro agora são sociais – e estão ficando móveis. Nós, jornalistas, não temos mais o controle da atenção das pessoas.

Os dados mostram isso. Em boa parte do mundo, a circulação de jornais e revistas vem caindo drasticamente. No Brasil, os dados indicam estagnação, com tendência de queda. A TV ainda é poderosa, mas alguns dos seus principais programas já não têm os números gloriosos do passado. Faça um exercício e olhe ao seu redor. Quantas pessoas estão usando o WhatsApp, o Facebook ou publicando no Instagram ao seu redor? O tempo das pessoas não é infinito. Se elas estão fazendo algumas coisas, estão deixando de fazer outras. Os joguinhos de celular, hoje, competem com o radinho de pilha. O Twitter compete com os editoriais impressos em papel jornal.

Isso traz um grande impacto econômico. Veículos de comunicação sempre pagaram boa parte das suas contas com dinheiro de publicidade. As empresas precisavam falar com as pessoas. Então, fazia todo sentido gastar dinheiro com quem concentrava atenção. Quando a atenção se fragmentou e migrou para outros lugares, o dinheiro seguiu o movimento. Apesar de alguns números não serem públicos nem precisos, já é aceito que Google e Facebook concentram boa parte da verba publicitária do planeta.

E o resultado é esse que estamos vendo no Brasil nas últimas semanas.

As empresas de tecnologia contratam cada vez mais gente (inclusive jornalistas). As empresas de jornalismo demitem cada vez mais gente (e não apenas jornalistas). Em parte porque as novas fontes de receita não são suficientes para tapar o buraco na velha mídia.

Os paywalls, a cobrança por conteúdo implementada por vários jornais ao redor do mundo, ainda é um experimento. Não há dados muito precisos, mas estima-se que apenas 1% da audiência online de veículos de comunicação pague assinaturas digitais. Boa parte das pessoas nunca chega ao limite de artigos. É uma evidência de que o valor dos bons produtores de conteúdo não é tão percebido assim pelas pessoas, infelizmente. Não conseguimos fazer com que muitas pessoas cliquem em 10, 20 links nossos por mês e sintam vontade de pagar pelo que fazemos.

E aí fica a questão: o jornalismo vai sobreviver nesse cenário de queda? Essa é a questão número 1, hoje. Durante muito tempo, eu também me fazia essa pergunta, dessa forma. Ela parte da premissa de que o jornalismo precisa encontrar um novo modelo de negócios para continuar vivo e exercer sua função pública. É uma ideia que continua viva e válida. Mas eu acho que chegou a hora de a gente se fazer novas perguntas.

Aprendi com meus professores na faculdade que uma boa reportagem nasce de uma mudança de ângulo. Novos ângulos levam a novas perguntas. E novas perguntas nos fazem pensar em novas abordagens, que levam a novos textos, áudios e vídeos. Acho que esse é o nosso momento. Uma crise, como diz o economista Paul Romer, é uma oportunidade grande demais para desperdiçar.

Da abstração ao valor concreto

Eu acredito firmemente que o jornalismo é essencial para sociedades livres, democráticas e estáveis. Porém, a frase “o jornalismo é essencial para sociedades livres, democráticas e estáveis” é uma abstração. É um credo no qual botamos fé, mas que é difícil de mensurar, de mostrar e de defender.

Quando nós concentrávamos a atenção das pessoas, não precisávamos nos preocupar muito em ir da abstração à prática. A abstração, sempre é bom dizer, continua relevante porque ela fortalece o pensamento. Ninguém pode se abster de pensar. Porém, a abstração não basta por si mesma. É preciso trazer o pensamento para a mesa de jantar, para o banco do metrô, para a calçada.

Como a gente mede o impacto do jornalismo na promoção de sociedades livres? Como a gente mostra, na prática, que o jornalismo fortalece a democracia? Como a gente defende que o jornalismo torna a sociedade mais estável ao deixá-la mais bem informada sobre o que acontece? Nós passamos décadas sem ter de justificar o que fazemos.

Nesse caminho, também perdemos a noção sobre o valor do que fazemos. Se você não se preocupa com o valor que cria, você também não mede o valor do que está entregando. Como você pede o tempo e o dinheiro das pessoas se não consegue justificar quanto vale aquilo que você faz?

Hoje, nós temos um desafio bem concreto. Como a gente transforma o jornalismo num item de primeira necessidade? Como a gente convence pessoas, organizações e empresas a dar seu tempo e seu dinheiro para quem se dedica a produzir jornalismo profissionalmente?

O jornalismo não concorre apenas dentro do seu próprio mundo. O jornalismo concorre com o tempo e com o dinheiro que as pessoas dedicam a tudo o que é importante para elas. Nós precisamos ter uma proposta de valor mais clara em vez de ficar lamentando que as pessoas não nos dão valor. Nós precisamos entrar na lista das coisas mais importantes da vida das pessoas.

Caso contrário, vamos cair no paradoxo da Kodak – a morte dos vencedores. A Kodak foi uma das líderes do mercado de filme fotográfico, enquanto esse mercado existiu. Ao atrelar seu futuro a um único jeito de ver a fotografia, com o processo máquina/filme/revelação, a Kodak afundou junto com ele.

A mesma coisa pode acontecer com os veículos de comunicação. As pessoas não vão se adaptar à forma como nós vemos o mundo, muito menos com a forma como nos preparamos para estar no mercado. Nós precisamos pensar em novas formas de concretizar o valor do jornalismo.

E esse valor não está atrelado a papel, tela, ondas de rádio. Ele está na disposição das pessoas em usá-lo, recomendá-lo, pagar por ele, compartilhar com os amigos. Ou seja: ao lado da questão meramente tecnológica, há uma questão de utilidade e valor intrínseco. Em vez de pensar no que o mundo pode fazer pelo jornalismo, precisamos pensar, de uma forma absolutamente concreta, no que o jornalismo pode fazer pelo mundo.

A volta ao passado

O jornalismo tem um grande passado pela frente – e isso não é necessariamente ruim. Costumo usar essa frase para instituições que não conseguem se reinventar e só olham para trás, como se a tradição fosse o bastante para construir o futuro. Mas, no caso do jornalismo, isso não é negativo. De fato, o jornalismo do século 21 pode aprender muito com o jornalismo do século 19.

Alguns dos primeiros jornais nasceram de necessidades muito claras. As ideias não circulavam. Elas ficavam presas em alguns círculos privilegiados e davam muito poder para quem as detinha. Queria saber o preço do café nos Estados Unidos? Que pena, só algumas pessoas sabiam e podiam lucrar com isso. Quem era o político mais forte no Senado? Infelizmente, vai ficar para a próxima. Quais são os escritores com as ideias mais interessantes? Desculpa, mas isso não é para você. Vai ficar aqui, no nosso salão de chá.

O jornalismo foi uma força poderosa. Ele quebrou o monopólio que governos e corporações detinham sobre uma série de informações que, hoje, circulam com abundância. E ele foi além. O jornalismo também deu voz a quem tinha o que dizer, mas não tinha como chegar a esses grupos poderosos. O comerciante injustiçado por uma lei bizarra, o operário detonado por uma jornada de trabalho exaustiva, o intelectual incomodado por um ditador de plantão. Todos eles puderam usar o jornalismo como uma nova possibilidade de serem ouvidos.

O jornalismo criou comunidades e as defendeu. No começo do século 20, o segundo maior jornal de São Paulo era o Fanfulla, da comunidade italiana. Era um veículo tão poderoso que ajudou até a mediar a primeira grande greve do Brasil, em 1917. Já que muitos dos operários eram italianos, então nada melhor do que colocar o jornal deles (e feito para eles) como mediador de conflitos. O jornalismo organizava várias vozes, as articulava e as representava.

O desenvolvimento do jornalismo ao longo do século 20 foi um desdobramento dessas necessidades e dessa presença. Nosso papel era revelar tudo que pudesse ser revelado para que as pessoas pudessem pegar essa informação e fazer com ela o que quisessem. E, no meio do caminho, criar identidade, afinidade e senso de comunidade.

Essa missão original foi se perdendo ao longo do século 20 na medida em que a atenção foi ficando cada vez mais concentrada e as empresas jornalísticas se tornaram cada vez maiores. A concentração de audiência foi boa para o modelo de negócios baseado em muita publicidade, mas afastou os veículos das reais necessidades das pessoas. Nós resumimos nossa relação com as pessoas a um “gosta ou não gosta?” – e a algumas regras sobre quando ignorar o que elas gostam ou não gostam.

Em vez de pensar sobre o que as pessoas poderiam descobrir e como elas poderiam fazer isso, em vez de entender a melhor forma de conversar com as pessoas sobre assuntos relevantes, nós nos conformamos com a mera identificação de gostos.

E, claro, com um discurso abstrato sobre imparcialidade, verdade, que muitas vezes é outra conversa muito difícil de ser sustentada na prática. Nós paramos de surpreender as pessoas. Na indústria da mídia, em vez de oferecer computadores, continuamos entregando máquinas de escrever.

E, verdade seja dita, era muito difícil resistir a essa tentação. Peter Thiel, fundador do sistema de pagamentos PayPal e obcecado com inovação, costuma dizer que monopólios e oligopólios não precisam se preocupar muito com modelos de negócio ou em entender as pessoas. Monopólios e oligopólios são excelentes modelos de negócio por si – até a chegada de uma onda que os quebra.

O jornalismo não precisa ser populista e fazer apenas o que as pessoas querem. Mas o jornalismo precisa entender como falar sobre coisas que as pessoas precisam, de uma forma que as pessoas desejem.

Nós vamos continuar precisando de pesquisas de opinião, mas também vamos precisar cada vez mais de antropólogos que nos digam como as pessoas consomem e usam informação. Vamos precisar de programadores e designers que nos ajudem a pensar nas melhores formas de entregar informações relevantes. Vamos precisar de pessoas, de profissões e formações ainda indefinidas, que nos ajudem a pensar em como aumentar drasticamente o impacto daquilo que produzimos.

É um desafio muito maior do que decidir se vamos ou não colocar paywalls ou cobrar por acesso a vídeos digitais. É como transformar “defesa da democracia” em algo concreto. Isso é grande.

A empresa jornalística

Maria Popova faz o site de uma pessoa só – e vive bem com ele. O site dela, o Brain Pickings, cobre literatura e arte. O volume de visitas não é gigantesco, mas é bom o suficiente para manter uma comunidade fiel e ser notado pelas empresas de comércio eletrônico. Algumas delas perceberam que as pessoas que vinham do site de Popova fatalmente compravam os livros indicados. Era uma taxa de conversão absurda, muito maior e melhor do que qualquer anúncio.

Até então, Popova sempre vivera das doações e assinaturas que as pessoas faziam no seu blog. Ela foi uma das primeiras pessoas a conseguir se manter apenas com o dinheiro que pedia à sua audiência.

Até que uma das empresas de comércio eletrônico quis colocar banners no site dela. Popova demorou uns dias, mas recusou o dinheiro. Publicidade vem e publicidade vai, ela disse, mas meus leitores vão ficar sempre comigo e eles podem não gostar dos anúncios.

Foi um choque. Uma empresa tradicional de jornalismo não pensaria duas vezes em aceitar o que Maria negou – inclusive as empresas digitais. Banners estão na ampla maioria dos sites jornalísticos do mundo.

Alguns dias depois, a empresa voltou à Popova. Dessa vez, sem banners. O acordo era simples. Ela poderia escrever o que quisesse, sobre quem quisesse. Mas, sempre que colocasse link de um livro e enviasse alguém para essa companhia de comércio eletrônico, ela receberia uma comissão generosa pelas vendas. Ela escreveria o que quisesse, sobre o que quisesse. Mas, como as métricas de Popova eram claras e funcionais, conseguiu um belo acordo.

O Brain Pickings continua no ar até hoje. Eu sou um leitor fiel do blog, dou minha contribuição mensal a ela e não me sinto nem um pouco incomodado com os links identificados, que permitem que eu compre algo e repasse parte para ela. Pelo contrário: fico feliz de financiar alguém que encontrou um modelo baseado num relacionamento claro e honesto com uma comunidade de pessoas.

Hoje, um dos maiores desafios é definir o tipo de empresa que produz jornalismo. O Brain Pickings é um exemplo, e seu caso não pode ser generalizado. Mas ele mostra que, sim, existem outras formas de manter um bom veículo além do jeito consagrado que conhecemos e hoje naufraga.

Para o bem e para o mal, as estruturas jornalísticas geradas ao longo do século 20 são grandes e caras. Elas são o resultado de um modelo de fazer e de manter empresas produtoras de conteúdo que foi depurado por décadas antes da revolução digital. E cujo modelo não serve mais.

Segundo a Harvard Business Review, a redação do The New York Times, com mais de mil jornalistas, responde por apenas 15% do custo da empresa, praticamente a mesma porcentagem consumida pelo departamento comercial. O resto está espalhado nos custos da operação – gráfica, distribuição, administrativo. Esse custo todo, que é indireto em relação à produção do jornalismo, é muito alto, mas se justificava.

Afinal, essa estrutura era pensada num cenário em que 75% das receitas vinham da publicidade. Você tinha uma estrutura de despesas ajustada ao tipo de receitas com que contava. Porém, essa conta não fecha mais – e talvez nunca mais volte a fechar. Os veículos de comunicação não conseguem mais viver de distribuir publicidade – em qualquer formato.

Marcus Brauchli, ex-editor executivo do Washington Post e atualmente diretor da North Base Media, uma companhia que investe em novas empresas de mídia, costuma dizer que a era das grandes empresas e das marcas jornalísticas acabou. Ele não está sozinho nessa. Brauchli vocaliza uma tendência.

Para muita gente, muitas empresas pequenas e médias vão ocupar os espaços deixados pelo fim de grandes empresas. Mais enxutas, focadas em necessidades e públicos mais específicos, essas novas companhias podem ser mais sustentáveis ao longo do tempo porque vão ter contas muito menores para pagar.

É como se o jornalismo tivesse nascido como uma profissão de pequenos artesãos, se transformado numa gigantesca fábrica de porcelana industrial e, agora, estivesse se transformando num ofício organizado em empresas de pequeno e médio porte, altamente especializadas.

Algumas dessas empresas estão pensando em formas novas de fazer e distribuir conteúdo. Há sites que se mantém com doações de leitores e pequenas assinaturas. Há outros que estão vivos com dinheiro de fundações, como a ProPublica, nos Estados Unidos. Nenhuma delas é ou sonha ser um conglomerado.

Claro que isso deixa muitas questões em aberto. Uma delas, bem concreta: quem paga os custos judiciais de uma empresa jornalística média que fez uma investigação rigorosa e descobriu os problemas de uma corporação ou de um indivíduo poderoso?

Outra questão é pensar no peso das instituições. O tamanho das empresas jornalísticas lhes deu força para se contrapor a governos e empresas ao longo dos anos. Como isso acontecerá num cenário de pequenas e médias empresas, com menos fôlego para continuar “publicando aquilo que alguém não quer ver publicado”? Essa rede será suficiente para impor medo a um prefeito corrupto ou a uma corporação que devasta?

Tem mais. O tamanho colocou as empresas numa posição de escrutínio público e de responsabilidade. Por mais críticas que a gente tenha aos veículos tradicionais, eles não podem flertar com o delírio. O custo do descrédito é grande demais.

Num cenário extremamente fragmentado, o preço para espalhar boatos e imprecisões é relativamente mais baixo. Eu fico surpreso quando alguns amigos, inteligentes, críticos, compartilham textos e vídeos de fontes duvidosas. Nas eleições, amigos queridos compartilharam coisas absurdas por WhatsApp.

Fomos bem rápido de um cenário altamente concentrado para um mundo altamente fragmentado. E aí a gente acaba colocando no mesmo balde veículos e pessoas bastante diferentes. Ainda não conseguimos criar os canais de confiança necessários. Estamos na era do “vi na internet”, e isso basta, como se a internet fosse uma instituição de produção jornalística. Não é.

O Facebook, que se confunde com a internet para muita gente, é um filtro social, e não um filtro de confiança. Porém, muita gente toma filtro social como filtro de confiança. É uma tecnologia poderosa e admirável de distribuição, mas ele não está no negócio da verificação de informação. É um problema que ainda não resolvemos.

O mundo novo do jornalismo provavelmente vai ter menos poder concentrado nos veículos, e talvez mais concentrado nas plataformas de distribuição. Talvez muitos desses veículos médios e pequenos tenham de se unir, em algumas situações específicas, para fazer acordos com Google e Facebook. Talvez eles ainda possam se unir para fazer coberturas específicas e caras, como recentemente alguns jornais brasileiros fizeram para reportar problemas em universidades públicas. Muitos, especialmente em áreas sensíveis, vão precisar unir forças para pagar advogados e se defender de processos.

Vivemos uma era de relação e interdependência. As iniciativas jornalísticas não funcionam mais como silos corporativos, mas como um sistema integrado de empresas atuando, produzindo e colaborando pontualmente – e não porque são hippies, mas porque o modelo de negócios requer essa colaboração. Nenhum editor mais pode ser uma ilha.

A gente caminha para um mundo de empresas menores, mais focadas e mais leves, talvez com algumas grandes empresas em alguns setores específicos, especialmente, creio eu, na área de vídeo. Essa transição pode garantir mais empregos, aumentar diversidade, mas pode ter custos que não somos capazes de predizer hoje. Essa análise vai requerer pesquisa e reflexão. O século 19 nos inspira, mas ele não pode ser transposto ao século 21 ingenuamente.

O conteúdo é só o começo

Nesse cenário de mudança e transição, ainda há uma nebulosa que brilha diante de nós e que não nos permite ver com clareza o que está ali na frente. Cada vez fica mais claro que jornalistas, além de escrever, filmar ou narrar, vão ter de conversar com os leitores.

Esse papo começa na área de comentários, mas pode continuar num evento pago em que as pessoas vão para entender um problema muito complexo. Um grupo de jornalistas que cobre o Poder Legislativo, por exemplo, poderia explicar a lei da terceirização em uma série de artigos, continuar com a conversa nos comentários e nas redes sociais e, durante um ou dois dias, participar de um evento pago para aprofundar o debate.

O tempo não será mais apenas dedicado a produzir uma série de reportagens, muitas delas sem muito valor percebido. O tempo de trabalho também será dedicado a criar relações – e os profissionais também serão remunerados por isso.

Não é algo novo no planeta. Bandas e escritores já sabem que o disco ou o livro são apenas o começo de uma série de relações econômicas que estabelecem com o mercado. Mas, acima de tudo, eles sabem que precisam fazer sentido e entregar valor.

Ninguém paga ingresso para ver um show porque quer incentivar a música em geral, mas porque gosta daquela banda em particular. Jornalismo não é música, mas podemos aprender uma ou duas coisas com profissionais que passaram por essa avalanche de mudanças antes de nós.

A The Economist sabe que há uma escassez de informação para uma elite global. Além da revista, ela tem um núcleo de inteligência e consultoria que abastece as pessoas mais ricas e poderosas do mundo com análises que fazem diferença nas carreiras e nos negócios delas. O conteúdo é um serviço independente, que fortalece os serviços de outras áreas da empresa.

Em alguns casos, o trabalho jornalístico pode ser mantido por fundações que veem impacto público no que o jornalismo faz. Elas não financiam o conteúdo, mas o que esse conteúdo é capaz de fazer: abrir uma investigação sobre corrupção, mobilizar as pessoas para uma causa, impulsionar a criação de uma lei.

Marshall Project, que cobre Justiça nos Estados Unidos, e a ProPublica, referência em jornalismo investigativo, são dois exemplos internacionais desse modelo. Eles se preocupam em produzir reportagens de impacto, que depois são distribuídas por vários canais, incluindo os veículos tradicionais. São novas alianças e novas formas de entender a produção jornalística.

Nesse cenário, fundações financiam impacto e jornais são instituições que ampliam esse impacto. O New York Times não precisa pagar a investigação toda porque ela já foi feita e paga por um grupo especializado e respeitado. Esse é um modelo bem interessante, nesse momento de transição, porque cria alianças, testa modelos e constrói valor. Não à toa, a Knight Foundation, nos Estados Unidos, é uma das organizações que mais vem colocando dinheiro nessas novas iniciativas.

Outra forma de gerar valor é lançar mão desse ambiente de abundância de informação.

Na era dos boatos, o jornalismo prova que, sim, ainda é necessário e continuará sendo necessário separar boato de fato. O bom senso continua sendo escasso – e isso tem valor.

O jornalismo bem feito pode suprir essa mercadoria raríssima no mercado de informação. Ele pode fazer a diferença entre disseminar loucura em um mundo atolado por informação desencontrada ou entregar esclarecimento por meio de uma história bem contada, que se desdobra numa série de impactos reais positivos em nossas vidas. É mais fácil pedir dinheiro ou apoio quando você prova o impacto concreto daquilo que você faz.

Há diversas outras formas de enxergar o conteúdo como o começo de uma rede de valor. Há quem diga que são 76, exatamente, como David Plotz, ex-editor da revista digital Slate.

De qualquer forma, essas formas de financiamento que veem o conteúdo como o começo de uma entrega maior, e não como o fim de uma relação com as pessoas, continuam crescendo. Uma delas pode estar exatamente… na relação com as empresas de tecnologia.

Se o conteúdo jornalístico cria valor para os usuários do Facebook, como o Facebook pode manter a criação desse valor dividindo receitas com quem produz conteúdo confiável e de qualidade?

Não é simplesmente bater na porta do Facebook e pedir parte da receita publicitária usando argumentos que já foram rebatidos. Quando os veículos batem lá, ou no Google, pedindo receita pelo conteúdo que circula nessas plataformas, as empresas de tecnologia devolvem dizendo que elas criam audiência – e valor – para esse conteúdo. Sem audiência, o conteúdo não tem valor. Enfim: essa porta está cerrada, esse jogo está perdido.

Por isso, é preciso colocar a questão em outros termos.

É preciso mostrar para o Facebook, com evidências, que seu negócio também correrá riscos, a médio e longo prazo, caso se transforme apenas numa plataforma de boatos, conspirações e gatinhos fofos.

Até porque, com o tempo, vai ser cada vez mais difícil para o Facebook sustentar a versão de que é apenas uma plataforma que não tem nenhuma responsabilidade sobre o que é publicado lá.

Agenda perdida, agenda encontrada

Discussões sobre futuro e presente do jornalismo misturam várias agendas. É natural. É um campo disputado, controverso, com um baita impacto na vida das pessoas. Às vezes a discussão sobre jornalismo vai para o campo da política partidária e volta pior do que começou. Às vezes tudo parece bizarramente anacrônico.

No passado, no Brasil, empresas jornalísticas não podiam ter capital estrangeiro. O objetivo era evitar que o um governo estrangeiro influenciasse o que os brasileiros pensavam. Era um pensamento pós-guerra, em que veículos de comunicação eram vistos como peças do xadrez de poder global.

No começo dos anos 2000, uma nova lei permitiu que empresas estrangeiras tivessem uma fatia do capital. Essa discussão, hoje, parece muito estranha. Veículos de comunicação podem publicar em português de qualquer lugar do mundo e ter uma grande audiência local. Há canais brasileiros e populares no YouTube feitos de fora do país. Como você regula isso? Essa é uma regulamentação que ainda faz sentido ou deve cair? Não tenho a resposta.

Também há a discussão sobre a regulamentação econômica da mídia no Brasil. Em vários países, a mesma empresa de mídia não pode controlar jornal, rádio e TV na mesma área. O objetivo é evitar concentração de poder. É um objetivo justo, mas hoje a vida é mais complicada. Algumas empresas podem ter concentração de propriedades de mídia, mas não ter atenção correspondente à extensão dessas propriedades. OK, você pode dizer que algumas empresas continuam recebendo verba publicitária desproporcional à atenção que recebem. Mas como você faz essa desconcentração de dinheiro? Como você balanceia esses recursos sem transferir poder demais para o Estado?

E tem mais: Facebook e Google estariam sujeitos a essas leis de concentração de audiência? Na União Europeia, o Google vem sofrendo com processos. Ele é investigado por direcionar as buscas para os seus próprios produtos, prejudicando a concorrência.

As relações de poder mudam, e mudam muito rápido. Já houve um tempo em que os jornais quiseram competir com a TV aberta. Abriram seu conteúdo na internet para aumentar o alcance e disputar os anúncios que iam para as emissoras. No meio do caminho, foram atropelados pelas empresas de tecnologia.

O Google já foi visto como aliado dos jornalistas. Nenhuma redação passa um dia sem fazer uma busca. Hoje, é inimigo das empresas jornalísticas. As fundações que apoiam o jornalismo podem ter uma agenda que não conhecemos. São novos terrenos, com questões que ainda não nos fizemos.

O jornalismo é uma profissão que só pode ser exercida em liberdade, mas as forças que influenciam e limitam essa liberdade são muito mais complexas do que as que estavam presentes no passado. As agendas não são tão simples. Regular muito o mercado jornalístico pode diminuir a diversidade de vozes no mercado – fica mais difícil para empresas independentes prosperarem.

Permitir a ampla, geral e irrestrita entrada de capital estrangeiro em empresas de mídia pode aumentar a diversidade de vozes – e dificultar ainda mais a vida das grandes empresas que disputam atenção. É como se os sinais tivessem trocado de lugar. A agenda política da mídia não é a mesma de 30 anos atrás.

E agora?

As discussões sobre o futuro do jornalismo, das mais concretas às mais abstratas, precisam ser reformuladas. Nós necessitamos, urgentemente, de novas perguntas. São elas que vão nos guiar pelos desafios do presente. No final das contas, é por isso que escrevi esse texto. Não tenho a pretensão de esgotar a discussão sobre o futuro do jornalismo. Esse texto é mais um convite a novas perguntas e contestações do que um caderno de teses. Afinal, grandes ideias nascem do debate e da discordância (da discordância elegante, é bom frisar, porque a violência argumentativa perdeu o charme na era dos trolls).

De qualquer forma, precisamos medir e entender o nosso impacto. Não basta dizer que você apoia a democracia – é preciso mostrar, por exemplo, quanto das suas reportagens ajudaram a promover leis melhores ou a amenizar um problema grave.

Não basta contar histórias, é preciso se preocupar, constantemente, em mostrar o impacto que elas têm. Não basta só produzir para a audiência, é preciso se relacionar com ela – conteúdo ela já tem de sobra.

Não basta contar quantas pessoas veem o que você faz, mas quanto tempo elas de fato dedicam a ler, ver ou ouvir o que você faz. Nós estamos no negócio da atenção e do impacto.

Só assim, entendendo o que fazemos, mensurando o valor do que fazemos, nos relacionando com o mundo para muito além das redações, é que será possível pedir dinheiro para pessoas, empresas e organizações. O conceito de crowdfunding para jornalismo, apesar de alguns problemas, vai nessa linha. Você prova seu valor e as pessoas decidem se vão lhe apoiar ou não.

Portanto, a pergunta não é mais se o jornalismo vai sobreviver. Ele vai. As pessoas vão continuar consumindo conteúdo, em diversas formas. A questão é como o jornalismo vai viver e estar no mundo.

Precisamos pensar no valor que produzimos e em modelos que ampliem e sustentem esse valor. Não é simples. Só que também nunca foi simples apurar uma reportagem longa, editar um especial, coordenar as operações de gráficas ou as antenas das afiliadas. Nós nunca estivemos no jogo da facilidade. Só que, agora, esse jogo difícil se estende para muito além de um prazo estourado ou de um fechamento complicado. Bem-vindo ao jogo.

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Leandro Beguoci, 32, é editor-chefe da F451, empresa de mídia que publica o Gizmodo Brasil e a Trivela, além de desenvolver conteúdo para marcas e agências. Trabalhou na Folha de S.Paulo, na Editora Abril, iG e News Corp, onde criou o departamento online do grupo FOX no Brasil. Também faz parte da OrbitaLAB, uma laboratório de inovação em jornalismo e mídia. Tem mestrado pela London School of Economics e é fellow na Tow-Knight Center for Entrepreneurial Journalism, na City University of New York