Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

É preciso salvar a imprensa de qualidade

Informada há três semanas, a editoria de Economia do semanário Die Zeit quis alarmar seus leitores com a manchete: ‘O quarto poder está à venda?’. A notícia referia-se às incertezas sobre o destino econômico do Süddeutsche Zeitung, desde que se tornou público o desejo da maioria dos acionistas de se afastar do jornal.


Se a venda ocorrer em hasta pública, é possível que um dos dois melhores jornais ‘nacionais’ da República Federal da Alemanha passe para as mãos de grandes investidores, de grandes corporações cotadas na Bolsa de Valores ou de um grande grupo de mídia. Alguém dirá: business as usual. Na realidade, o que há de alarmante no fato de que os donos façam uso de seus direitos e cedam, por uma ou outra razão, sua parte na empresa?


A crise que se abateu sobre a imprensa diária no início de 2002, após o colapso do mercado publicitário, foi posteriormente superada pelo Süddeutsche Zeitung, assim como pela maioria dos órgãos de imprensa. As famílias que agora o desejam vender – e que dispõem de mais de 62,5% das ações – escolheram, portanto, um momento propício.


Apesar da concorrência eletrônica e da mudança de hábitos de leitura, os lucros cresceram. Independente da atual retomada da economia, esses lucros resultam, essencialmente, de medidas de racionalização que têm repercussões no plano da prestação e da latitude de ação das redações. (…)


Na semana passada, Die Zeit retomava a questão, uma vez mais, falando da ‘luta do capital financeiro de Wall Street contra a imprensa norte-americana’. O que se esconde por trás de tais manchetes? Obviamente, a crença de que os mercados aos quais as empresas nacionais de imprensa devem se impor não estejam adaptados à dupla função que, até agora, a imprensa de boa qualidade soube preencher: satisfazer a demanda por informação e cultura, mantendo-se razoavelmente rentável.


Mas, então, os sólidos lucros não seriam a confirmação de que as empresas de comunicação que se submeteram às ‘saudáveis medidas de apertar os cintos’ hoje satisfazem melhor os consumidores de seus produtos? Teria a imprensa o direito, sob o pretexto da ‘qualidade’, de amputar a liberdade de escolha de seus leitores? Teria ela o direito de impor relatórios espartanos ao invés de oferecer a informação-espetáculo?


‘Mídia diretora’


Essa discussão em torno do caráter específico de mercadorias como cultura e informação remete ao slogan que, por ocasião do surgimento da televisão nos Estados Unidos, correu o país de um extremo ao outro, sugerindo que aquele novo meio de comunicação não passava de uma ‘torradeira com imagens’. Com isso, queriam certamente dizer que a produção e o consumo dos programas de televisão não poderiam senão ser – sem sombra de dúvida – uma jogada de mercado.


Desde então, as empresas de comunicação passaram a produzir programas para os espectadores e a vender os índices de audiência de seu público às firmas publicitárias, que são exigentes. Esse princípio de organização, tão generalizado quanto foi sua introdução, teve o efeito, sobre a esfera político-cultural, de um temporal com geada sobre um campo de milho.


Nosso sistema audiovisual ‘dual’ tenta limitar os estragos. De qualquer maneira, as leis regionais sobre a mídia, assim como as decisões da Corte Constitucional sobre as questões e os princípios de programação das empresas públicas, refletem uma concepção segundo a qual a mídia eletrônica de massa não deve apenas satisfazer as necessidades de diversão e entretenimento dos consumidores – necessidades facilmente comercializáveis. Os ouvintes e espectadores não são apenas consumidores, e, portanto, usuários do mercado; são também cidadãos que usufruem de um direito de participação cultural, de acesso à informação política e de participação na formação da opinião.


É com base nessa exigência jurídica que os programas que garantem à população esse ‘saldo’ não podem se tornar dependentes de sua eficiência publicitária ou do apoio de patrocinadores. Na realidade, os próprios impostos – que autorizam o financiamento de tais programas e que decorrem de uma decisão política – devem mesmo ser descontáveis, de acordo com o orçamento específico das regiões, para os mais altos e mais baixos da conjuntura econômica. (…)


O direito público criou, portanto, um belo dispositivo que permite enquadrar a mídia eletrônica. Não poderia esse dispositivo, eventualmente, constituir um exemplo para a organização da imprensa escrita ‘séria’?


Trabalhos produzidos pelas ciências da comunicação destacam um fato interessante em relação a isso. De acordo com esses estudos, a imprensa de boa qualidade desempenharia – pelo menos no âmbito da comunicação política – o papel de ‘mídia diretora’. Na realidade, parece que até o rádio, a televisão e os restantes veículos seriam amplamente tributários, em sua cobertura política e nos comentários, da abordagem dos temas e das contribuições formulados por esse ‘jornalismo reflexivo’.


Elemento de junção


Admitamos a hipótese de que algumas dessas redações passem a ser tuteladas por investidores financeiros que apenas procuram lucros rápidos, planejados a prazos inapropriados. Se as mudanças introduzidas, em termos de organização e de economia – questão difícil e crucial –, colocarem em risco os critérios de jornalismo adotados, então é atingido o coração da esfera pública política.


Sem o fluxo de informações – cuja pesquisa pode ser dispendiosa – e sem uma retomada dessa informação – por meio de argumentos que pressupõem uma perícia que também não é exatamente gratuita –, a comunicação pública só pode perder sua vitalidade discursiva. A esfera pública correria, então, o risco de não ter condições de resistir às tendências populistas ou de não preencher sua função – o que lhe cabe cumprir no âmbito de um Estado democrático.


Vivemos em sociedades pluralistas. Ainda que enfrentando uma oposição eventualmente profunda de visões do mundo, o processo de decisão democrática não pode empregar uma força de legitimação capaz de convencer a totalidade dos cidadãos de que, ao combinar duas exigências, deve associar a capacidade de integração – e, portanto, a participação de todos os cidadãos com iguais direitos – com uma batalha de opinião travada de forma mais ou menos discursiva. Sem controvérsias que levem à deliberação, torna-se impossível, na verdade, fundamentar a hipótese segundo a qual o processo democrático pode levar, no longo prazo, a resultados mais ou menos razoáveis.


A formação democrática da opinião tem uma dimensão epistemológica, pois trata-se de criticar, por meio dela, afirmações e avaliações falsas. É isso que está em jogo quando a esfera pública obtém da opinião a vitalidade da discussão. É possível imaginá-la intuitivamente, de uma maneira mais ou menos clara, visualizando-se, por um lado, a distância que separa aquilo que produz, em termos de discussão pública, a concorrência de ‘opiniões públicas’ divergentes, e, por outro, a publicação, de forma demoscópica [demoskopisch], de um leque de opiniões.


Com todas as suas dissonâncias, as opiniões públicas que se criam através da discussão e da polêmica são filtradas por informações e motivos que lhes dão pertinência sobre o assunto que as separa; enquanto a demoscopia de opiniões, que de certa maneira ainda são apenas latentes, limita-se a entregá-las em estado bruto e inerte.


Os fluxos de comunicação selvagens de uma opinião pública dominada pelos meios de comunicação de massa não permitem, obviamente, discussões ou deliberações regulamentadas, tal como ocorre em tribunais ou em comissões parlamentares. Aliás, é necessário que assim seja: a esfera pública não passa de um elemento de junção. Na realidade, ela é o elemento que permite vincular, de um lado, as discussões e negociações institucionalizadas que se travam nas arenas do Estado; e, de outro, as conversas episódicas e informais que se dão entre os potenciais eleitores.


Idéia contra-intuitiva


A esfera pública contribui para a legitimação democrática da atividade do Estado ao escolher aquilo que deve ser objeto de uma decisão política, dando-lhe a forma problemática e reunindo as posições mais ou menos informadas e fundamentadas para que possam formar opiniões públicas concorrentes. É por isso que a comunicação pública desenvolve uma força que, simultaneamente, estimula e oferece orientação à formação da opinião e da vontade dos cidadãos – forçando, com isso, o sistema político à transparência e à adaptação.


Sem o impulso de uma imprensa opinativa, que informe de maneira confiável e faça seus comentários com a devida prudência, a esfera pública não poderá mais fornecer essa energia. Quando se trata de gás, eletricidade ou água, o Estado tem a obrigação de garantir à população o fornecimento. Por que não deveria ter a mesma obrigação quando se trata de outro tipo de ‘energia’ que, em caso de falta, produziria perturbações que ameaçariam o próprio Estado democrático?


Que o Estado se esforce em proteger os bens públicos – e, em especial, aquele que constitui a imprensa de boa qualidade – não deve ser considerado um ‘erro de sistema’. O fundamental é saber como ele o poderá fazer da melhor maneira, e isto não é uma questão pragmática. Os subsídios pontuais são apenas um dos recursos. Existem outros, tais como o modelo de uma fundação com participação pública ou as deduções de impostos para as famílias proprietárias.


Nenhuma das tentativas dessas experiências deixou de ter conseqüências. De uma ou de outra maneira, o que importa, prioritariamente, é acostumar-se à idéia do subsídio de jornais e revistas. Do ponto de vista histórico, a idéia de deixar nas mãos do mercado a direção dos produtos da imprensa tem algo de contra-intuitivo. Antigamente, o mercado abriu um espaço no qual pensamentos subversivos podiam se emancipar da opressão do Estado. Mas o mercado não pode preencher tal função senão pelo tempo que leva para a legalidade econômica buscar asfixiar seu conteúdo político e cultural.


Como sempre, Theodor Adorno acertava quando criticava a indústria cultural. Portanto, o desafio está na ordem do dia, pois nenhuma democracia pode permitir uma incapacidade do mercado nesse setor.

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Professor emérito da Universidade Goethe, em Frankfurt, e autor, entre outros de Teoria da ação comunicativa e Mudança estrutural da esfera pública