Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

E se fosse seu o nome que sai no jornal?

Assim que se soube que dois figurões da Gtech contaram à Polícia Federal que o então assessor parlamentar do ministro José Dirceu, Waldomiro Diniz, os aconselhara a recorrer aos serviços (milionários) de um certo Rogério Buratti para garantir a renovação do contrato da multinacional de operação de loterias com a Caixa Econômica, aconteceu o que tinha de acontecer: a imprensa em peso foi atrás do novo nome a entrar no elenco do Waldogate – e se pôs a cavar.


Cavando, cavando, os repórteres levantaram a não propriamente imaculada ficha do militante petista que em 1994 o então prefeito de Ribeirão Preto, Antonio Palocci, precisou demitir do cargo de secretário de Governo depois que ele se autoflagrou acertando uma licitação com um empreiteiro. (Buratti gravou a conversa comprometedora, mas a fita foi roubada e divulgada. Ele só se livrou da Justiça porque a prova tinha sido obtida de forma ilícita.)


Cavando, cavando, foram além. Além de Buratti e além da ética.


Na edição de 21 de março, a Folha de S.Paulo publicou uma matéria de três quartos de página, dividida em quatro blocos, sob a manchete "Assessor da Caixa tem ligação com Buratti" e o subtítulo "Ralf Barquete, auxiliar da presidência do banco, é amigo do empresário, acusado de envolvimento na intermediação de contrato da Caixa".


Nela se lê que Ralf Barquete Santos é economista, foi secretário da Fazenda de Palocci em Ribeirão, ocupa uma das assessorias especiais (a de recursos humanos) da CEF, onde começou a trabalhar fevereiro de 2003, e desde julho está licenciado por motivo de saúde.


Só isso? Não. Barquete "manteve no passado relações com Rogério Tadeu Buratti, acusado de ser o beneficiário…" – e aí entra o rolo Waldomiro/Gtech.


E que relações foram essas? "Buratti e Barquete tiveram em comum a passagem pela Prefeitura de Matão (SP) na gestão do PT entre 1996 e 2000." Buratti foi assessor especial do prefeito de janeiro de 1997 a abril de 1998. Barquete foi secretário de Fazenda e de Administração, de dezembro de 1998 até o fim do governo.


Tem mais? Tem. Em 1990 e 1991, Barquete "prestou serviço de consultoria" para a holding Leão Leão, que viria a ser a maior doadora da campanha municipal de Palocci em 2000 e da qual Buratti era vice-presidente até este 20 de março. "O ex-prefeito de Matão disse que Barquete não foi indicado por Buratti", mas por uma empresa de informática.


E daí? "A Leão Leão também obteve entre 1997 e 2000, na administração do PT em Matão, quatro contratos que foram julgados irregulares pelo Tribunal de Contas do Estado. Um deles foi julgado ilegal na Justiça em primeira instância e está em fase de recurso."


E depois? "Os caminhos de Buratti e Barquete também se cruzaram indiretamente em outros dois momentos. Ambos foram secretários da Prefeitura de Ribeirão Preto" – um, na primeira gestão de Palocci; outro, na segunda.


Acabou? Não. "Buratti afirmou, ontem, por meio de assessoria, que é amigo de Barquete desde 2000 e que o visitou em 2003." Uau!


A não ser que o incauto leitor tenha a paciência de ler, uma a uma, as 115 linhas de coluna do texto principal, mais as 58 do box "Banco afirma que Ralf Barquete não atua em decisões", só poderá concluir que esse tal de Ralf, cuja "ligação" com Buratti está escancarada no título, coisa boa não há de ser.


E se ler as matérias distraidamente chegará à conclusão de Buratti e Barquete formam uma dupla – até os nomes são parecidos. E deixará passar as "letras miúdas" da reportagem. A saber:


Ambos mantiveram relações no passado (grifo acrescentado).


Os seus caminhos se cruzaram indiretamente nas prefeituras de Matão e Ribeirão (onde nunca chegaram a trabalhar juntos).


Embora amigos, não foi Buratti quem indicou Barquete ao prefeito de Matão, mas uma empresa de informática.


Linchamento moral


Se na Folha Barquete foi manchete, no Estado (do mesmo dia) foi figurante (do mesmo enredo sobre a vida pregressa do amigo), na matéria cujo título informa que "Buratti acumula patrimônio de R$ 1,5 milhão".


Só na 176ª das 197 linhas do texto, Barquete entra em cena, como imagem espelhada de Buratti. "Enquanto Buratti trocou o serviço público pela iniciativa privada", compara a reportagem, "o seu amigo Ralf Barquete dos Santos fez o caminho inverso", a partir da Leão Leão.


"Hoje consultor da presidência da Caixa Econômica Federal, Ralf foi um dos arrecadadores da campanha de Palocci, que teve como principal doadora, segundo a prestação de contas, a Leão Leão." Uau!


Não precisava nem fechar a reportagem com a ironia "Esse mundo é pequeno" para o leitor concluir que todos os citados, com a presumível exceção do ministro Palocci, têm culpa em cartório.


A culpa de Barquete – a julgar apenas pelo que dele informaram os dois jornais – está plenamente configurada no ditado "Dize-me com quem andas e direi quem tu és". E em nada além disso.


Para o jornalismo, essa pérola da sabedoria popular não deixa de ter a sua serventia. Ajuda na pauta das reportagens que pretendem puxar o fio da meada de um escândalo, ligando os nomes às pessoas – a teia de relações de lugar, família, partido ou negócios que em 99% das vezes deixam as suas digitais na boca dos cofres públicos assaltados.


Mas, em um caso como este, o ditado é um incentivo à transgressão da ética jornalística. Porque, mesmo não tendo apurado nada que indicasse objetivamente que o cidadão Ralf Barquete dos Santos fosse igual àquele outro com quem andava ou anda, os dois jornalões, em vez de continuar garimpando o veio promissor ou de separar o nome garimpado para futura referência, puseram a circular, sutilmente, irresponsavelmente, a sugestão de que algumas ele fez.


Entra governo, sai governo, entra denúncia, sai denúncia – e sempre sobram espaço e ocasião na imprensa brasileira para desfigurar a honra pessoal e a imagem pública de alguém.


Será que não ocorre aos repórteres e editores que participam desses linchamentos morais perguntarem-se pelo menos como se sentiriam se os seus próprios nomes, ou de seus familiares, ou de seus amigos próximos, aparecessem em letra de forma da mesma maneira incriminadora?


Afinal, nunca se sabe. "Esse mundo é pequeno." [Finalizado às 21h56 de 29/3]