Num de seus mais famosos filmes, A rosa púrpura do Cairo, Woody Allen confronta o desejo de liberdade com seus limites e com a força da engrenagem movimentada para manter o mundo tal qual é. O personagem subitamente rompe com o roteiro que lhe é imposto e se assume como pessoa, comovido com a moça que se refugia no cinema para escapar da rudeza do cotidiano opressivo e sem perspectivas do tempo da grande depressão americana. Sai da tela, convida-a a viver o sonho, quer ele mesmo sentir o prazer de estar vivo. Vai jantar com a moça num restaurante luxuoso, mas se surpreende porque as coisas não funcionam como no filme: não pode pagar a conta com dinheiro cenográfico, simples pedaços de papel que imitam as cédulas verdadeiras.
Então, escapa mais uma vez: quem experimenta a sensação de liberdade não pode aceitar voltar à prisão. Em todas as salas que exibem o filme o personagem revolta-se e vai contagiando os demais, que também começam a agir por conta própria. É uma rebelião, que precisa ser contida: então, os comandantes da indústria engendram uma estratégia para forçar o retorno à situação que lhes devolverá o controle.
Vivemos assim, entre o que nos impulsiona em direção à liberdade e o que nos constrange a obedecer. Como nos versos de Chico Buarque, quarenta anos atrás: todo dia só pensamos em poder parar e dizer não, depois pensamos na vida para levar e nos calamos com a boca de feijão.
No entanto, se de fato sempre nos calássemos, nem sequer poderíamos produzir versos como esses: estaríamos tão adaptados que nem perceberíamos a alienação. E é a consciência da alienação que nos leva a lutar contra ela e enfrentar o sistema que nos constrange.
A dignidade do inseto
A perversidade do sistema não está apenas em nos reduzir à mediocridade, mas em nos levar a orgulhar-se dela, apresentando-a como o contrário do que é: como virtude. Quando, certa manhã, Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos metamorfoseado num grande inseto, provocou o horror em todos os que o cercavam. Por quê? Porque expôs a todos o que ninguém desejava enxergar. Como apontou o psicanalista Hélio Pellegrino num notável ensaio sobre esse conto de Kafka – “A honra de ser inseto”, publicado originalmente no Jornal do Brasil de 9/6/1968 e reproduzido no livro A burrice do demônio (ed. Rocco, 1988) –, ao assumir radicalmente sua condição de invertebrado, aquele modesto caixeiro-viajante demonstrou que “não consegue viver como pessoa, numa estrutura social que nega a pessoa. E não o consegue justamente por ser uma pessoa, por ter a vocação da pessoa”. Assim, metamorfoseando-se, perde sua condição humana, mas “consegue fazer desta perda uma desesperada afirmação de humanidade”.
Bem que tentamos nos enquadrar. Bem que fazemos toda sorte de malabarismos para continuar levando a vida, ignorando os mecanismos que fazem girar as engrenagens que nos espremem até o limite do insuportável. Mas não podemos evitar que as frustrações se acumulem e então, de repente, nos damos conta. Talvez seja esta uma explicação para a repercussão do artigo que escrevi neste Observatório (ver “O suicídio do jornalismo”): a explosão de uma insatisfação há muito tempo represada, que identificou ali uma forma de expressar-se.
Daí a pergunta: e se os jornalistas resolvessem falar?
Encarar o sofrimento
No Brasil ainda é rara a pesquisa sobre o mundo do trabalho dos jornalistas. Quem se dedica a esse tema sabe como é difícil encontrar pessoas dispostas a dar seu depoimento, ainda assim, sempre, sob a condição de anonimato e com todos os cuidados para apagar os vestígios do discurso que possam dar pistas para a identificação dos entrevistados. Mas aos poucos vão surgindo resultados de pesquisas nessa área. Por exemplo, no livro As mudanças no mundo do trabalho do jornalista (ed. Atlas, 2013), Roseli Figaro, Cláudia Nonato e Rafael Grohmann expõem a situação dos profissionais em São Paulo, desde os empregados numa empresa tradicional até os que sobrevivem como free-lancers, passando pelos que têm diferentes vínculos trabalhistas e pelos que atuam em assessorias de imprensa.
Entre os próximos dias 12 e 15 de maio, em Florianópolis, o III Mejor – anagrama de “mudanças estruturais no jornalismo”, tema em torno do qual vem se organizando um grupo crescente de pesquisadores – oferecerá a oportunidade de discutir “os silêncios do jornalismo”, entre eles os que recaem sobre “as dores e doenças advindas do exercício da profissão”, que tantos jornalistas não querem reconhecer “para não demonstrar fragilidade”. O que não diz respeito estritamente a questões psicológicas, mas tem a ver com a imagem que se precisa preservar no ambiente de trabalho, no qual os dirigentes, normalmente muito bem remunerados, também são jornalistas.
Sair da tela
Não se trata de falar apenas sobre o próprio sofrimento, resultante do trabalho nessas “fábricas de produzir infelizes” em que se transformaram as redações – e a referência, evidentemente, não se limita a esse campo de atuação, pois a produção de infelizes é própria de um sistema baseado no trabalho alienado –, mas de dar seu testemunho sobre o que viveram e vivem ali, o que pode ajudar a esclarecer a origem dos descaminhos enfrentados hoje e a buscar saídas coletivas para a recuperação da dignidade e do prestígio profissional.
Sair da tela que aprisiona e obriga a seguir um roteiro imposto: se há alguma vantagem num momento de crise, é este de retirar o véu que encobre a fantasia e leva à coragem de falar, ainda que com os devidos cuidados. Quem sabe se pode ter esperança?
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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)