Lula pode realizar um governo como jamais o Brasil viu. Pode ao fim do mandato dizer que foi pé quente, que trouxe para o Brasil a Copa do Mundo de Futebol de 2014 e as Olimpíadas de 2016 para o Rio de Janeiro. Pode dizer que deixa como legado a Consolidação das Leis Sociais (CLS) e o marco regulatório para a exploração de petróleo na camada do pré-sal. Pode recordar que o país emprestou ao FMI encerrando longas décadas de humilhante dependência. E pode bater no peito afirmando que no Brasil uma Colômbia saiu da classe pobre para ingressar na classe média. Sem cerimônia, como lhe é peculiar, Lula pode até dizer que conseguiu escandalizar tanto a esquerda quanto a direita.
Mas o que ele deixa como legado para os costumes políticos é algo no mínimo surpreendente e ainda vai oferecer material para anos de estudos na academia, em particular para pesquisadores de comunicação social, ciência política, semiologia, sociologia política. É que os anos Lula são ricos de inversões e apropriações nos domínios da linguagem. Estudar aspectos como o lugar da fala, os tipos de discursos, os aspectos polissêmicos concernentes, as condições do discurso, o uso de metáforas e analogias e… tudo isso, somado às características da personalidade do presidente Lula, coloca diante de nós tarefa de longo percurso e extenso alcance.
Fica evidente que é comunicador de excelência, desses que tem apenas uma única preocupação na vida política – se fazer entender. E não será o protocolo presidencial, a liturgia do cargo, a interlocução privilegiada que o fará mudar o discurso. Seu discurso é sua fala. E não existe nada tão arraigado no ser humano quanto sua posse da palavra e dos meios de se comunicar. Até porque não sabemos onde começa e onde termina o discurso em se tratando de Luiz Inácio. Certas palavras e determinados palavrões pronunciados por Lula, de acordo com a ocasião e o público-receptor, parecem despidas de sua conotação mais evidente. E foi o que aconteceu em sua recente viagem a São Luis do Maranhão, em 10 de dezembro último.
Pesquisas eleitorais
Em solo maranhense, ao descrever a situação dos mais pobres do Norte e do Nordeste que não têm acesso a saneamento básico devido a ‘muito tempo de Brasil mal gerenciado, privilegiando as regiões mais ricas’. o presidente Lula cismou de incluir um sonoro palavrão em sua fala. Ele disse: ‘Eu não quero saber se o [prefeito de São Luís] João Castelo é do PSDB, se o outro é do PFL ou se é do PT. Eu quero saber se o povo está na merda e eu quero tirar o povo da merda que ele se encontra’. Em minutos a fala presidencial tomou ares de escândalo repercutindo na internet, passando por sítios de partidos políticos e desembocando em portais de notícias como UOL, Terra e G1. E foi até a instâncias eclesiásticas.
O presidente nacional do PSDB, senador Sérgio Guerra (PE), disse que o palavrão de Lula ‘choca menos pela grosseria do que pela sinceridade’. E foi além: ‘O atual presidente disse, com outras palavras, que ele mesmo vai bem, mas o povo vai mal. De fato, o povo vai mal. (…)’. Não sei como se deu a transição para o original raciocínio do senador Sérgio Guerra, porque vendo o vídeo uma e três vezes nada nos faz embarcar nessa interpretação. Seria o mesmo que alguém – para usar o pensamento inverso – dizer que ‘o povo brasileiro vai muito bem’ e um terceiro interpretar algo como ‘ele, autor da frase, é quem vai mal’. Não bate o raciocínio, ou melhor, esse arrazoado não chega mesmo a ficar em pé ante um cotejamento mínimo, ante trégua básica entre Tico e Teco.
A revista Veja (edição 2143) destacou a frase na seção ‘Veja Essa’. Contextualizou-a… bem ao estilo Veja em se tratando do presidente Lula: ‘Do presidente Lula, em cerimônia do programa Minha Casa, Minha Vida, no Maranhão, estabelecendo um novo patamar de civilidade no Brasil.’ Segundo o articulista de Veja Reinaldo Azevedo, ‘Lula, hoje, se aliou à quase totalidade dos grandes promotores da `merda´ em que vivem setores importantes da sociedade brasileira. (…) há cálculo na fala de Lula, tanto é que ele já imagina a reação da imprensa. Mas ele está calculando o seu desabafo, a sua ira, a sua contrariedade. Com o quê? Acho que o resultado das pesquisas eleitorais o está deixando intranqüilo’.
‘Grosseiro e cafona’
Vamos aos fatos. O presidente disse literalmente a situação em que o povo se encontra. Não estou me referindo ao povo que mora na Avenida Atlântica ou na Delfim Moreira, no Rio de Janeiro, nem ao povo que mora em São Paulo na região dos Jardins. E muito menos ao povo que mora nos casebres de 1.500m2 de área construída no Lago Sul de Brasília. Se a fala presidencial fosse dirigida a este público-alvo seria, sim, um engano colossal, pois erraria o presidente tanto na forma quanto no conteúdo. Mas, a bem da verdade, o chefe de Estado e governo foi certeiro: o povo realmente encontra-se na merda já que apenas 42% dos cidadãos brasileiros são atendidos por coleta de esgoto. É que há um atraso gigantesco a ser zerado.
E mesmo com todos os recursos reservados pelo governo federal para tornar factíveis projetos de saneamento básico nos últimos anos, a verdade é que com o atual ritmo de investimentos em obras de coleta de esgoto o Brasil só terá universalizado esse serviço público essencial daqui a nada menos do que 62 anos. Se não fosse a percepção dessa realidade, que tanto escandaliza a mídia do centro sul do país, talvez fossem necessários 109 anos para que os brasileiros pudessem desfrutar de uma atmosfera, vamos dizer assim, minimamente amena.
De qualquer forma, a expressão usada pelo presidente – que até meu teclado não se sente confortável para ficar digitando a torto e a direito – não é das palavras mais pesadas do repertório do baixo calão em português. Temos outras e muito piores. Acontece que esta – em especial – é de uso corrente no cotidiano dos brasileiros. É verdade também que não ecoa em salões nobres da academia com frequência e nem é recorrente em falas presidenciais. É fato que presente no evento maranhense encontrava-se o senador José Sarney, membro da Academia Brasileira de Letras, ex-presidente da República e presidente do Senado Federal. De qualquer forma não é palavra-tabu. Longe disso.
Raivas passageiras, pequenas barbeiragens no trânsito são capazes de se fazer ouvir a palavra. Será que ninguém sabe que quando um espetáculo se apresenta os artistas de teatro usam a expressão ‘merda’ para desejar boa sorte? A tradição se sustenta na fantasia de que desejar boa sorte pode dar azar. Funciona como espécie de reversão do desejo, como se os deuses punissem a ambição. E há quem diga que a nossa tradição vem da francesa ‘merde’.
‘Merda’ é nome de música composta por Caetano Veloso. Destaco estes versos:
‘Gente que pôde inverter/ Para sempre o sentido/ Da palavra `merda´/ Merda! Merda pra você!/ Desejo/ Merda!/ Merda pra você também/ Diga merda e tudo bem/ Merda toda noite/ E sempre a merda…’
O mesmo Caetano que há algumas semanas chamou Lula de analfabeto, grosseiro e cafona. Recebeu repreensão de todo lado, inclusive de sua centenária mãe, dona Canô.
‘Ato espontâneo’
Chico Buarque, o grande autor de ‘Construção’ em entrevista à revista TPM (2006) denunciou o adjetivo, supostamente dirigido ao então candidato Lula:
‘Todo mundo sabe como foi conseguida a malfadada reeleição presidencial [do FHC]… mas qualquer um vai no jornal e manda que o Lula é um merda. Se os candidatos forem Lula, Alckmin, Garotinho, voto no Lula.’
Oscar Niemeyer usa essa expressão para designar o nosso mundo e ao mesmo tempo fazer sua profissão de fé:
‘Se eu fosse jovem, em vez de fazer Arquitetura, gostaria de estar na rua protestando contra este mundo de merda em que vivemos. Mas, se isso não é possível, limito-me a reclamar o mundo mais justo que desejamos, com os homens iguais, de mãos dadas, vivendo dignamente esta vida curta e sem perspectivas que o destino lhes impõe’.
Ante a celeuma levantada o assunto terminaria na alçada do bispo. E coube ao presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), dom Geraldo Lyrio Rocha, minimizar já no dia 11/12 o ‘palavrão’ dito pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante o agora famoso discurso no Maranhão. Dom Geraldo disse que, apesar de não falar palavrão, não pode tornar ‘grave’ um gesto ‘espontâneo’ do presidente da República.
‘Eu acho que isso [palavrão] pode ter sido um ato espontâneo. Não devemos minimizar coisas graves, nem tornar graves as coisas mais simples. Eu não falo palavrão, mas prefiro não julgar. Palavrão não cabe em contexto nenhum, mas não cabe a mim julgar. Só Deus é quem pode julgar’, disse.
Portanto, o assunto é de alçada mais elevada, está na esfera mesma… da divindade. É o que o bispo diz.
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Jornalista, mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter