Poucos veículos de comunicação em massa podem fazer o que a TV Globo vem fazendo: ela própria virar notícia; ela própria, sem qualquer espécie de pudor ou autocrítica, celebrar – sem preocupação alguma com a minutagem –seus feitos, suas mudanças internas, por cosméticas que sejam, e tudo isso não em campanha institucional, mas sim como produto jornalístico, destes que nos acostumamos a vincular à ideia de derrubada de governos, morte de tiranos, eleições presidenciais, casamentos de membros da realeza britânica, ascensão e queda de empresas com suas ações em bolsas de valores, furacões, sequestros, planos econômicos, denúncias de corrupção, fraudes no sistema financeiro, descaso com a saúde pública e mais um trilhão e duzentos e cinquenta e um milhões de coisas.
É o que vem acontecendo na emissora carioca do Jardim Botânico.
Nunca uma prosaica “dança de cadeiras” recebeu tanto foco no noticiário global. Começou em setembro com a mudança dos apresentadores dos telejornais Bom Dia Brasil e no SP TV, envolvendo os jornalistas Chico Pinheiro, Renato Machado e Cesar Tralli. Dois meses depois, exatamente no primeiro dia de dezembro, da bancada do Jornal Nacional em que tem assento cativo há 14 anos, Fátima Bernardes escalou a notícia: “Hoje, o Jornal Nacional virou notícia”.
“Sentirei a sua falta”
A matéria, nesse primeiríssimo momento, chegou a ocupar 310 segundos, cerca de 4 minutos e meio, o que em tempo de publicidade no horário nobre da emissora líder em audiência parece uma eternidade e rende costumeiramente alguns milhares de reais por blocos de 15”, 30” e 1’. Mas a perdulária Globo podia se autoconceder o luxo de utilizar todo esse valioso tempo para anunciar – não para aquele mesmo dia, mas para os dias seguintes – que Fátima Bernardes deixaria o Jornal Nacional e seria substituída por Patrícia Poeta, que há alguns anos levava adiante a desgastada fórmula do programa Fantástico. E o lugar de Poeta? Ficaria com Renata Ceribelli.
Em se tratando do Fantástico, o que é fantástico mesmo é que este dominical parece estar em franca corrida para ultrapassar, em termos de longevidade, nosso casal patrimônio de coisas boas: dona Canô Veloso, em sua Santo Amaro da Purificação, na Bahia, e o genial arquiteto Oscar Niemeyer, que pode se debruçar sobre a varanda de seu apartamento na Avenida Atlântica para ver Copacabana e também observar com olhos de intenso brilho… o tempo passar.
Sobre o Fantástico, resta dizer que parece ser um programa com natureza bipolar: mistura jornalismo com futilidades, coisa séria, como a crise financeira internacional, com música inédita composta por Chico Anysio, e aquecimento global e os números mais recentes sobre o retrato da sociedade brasileira divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com quadros cada vez menos risíveis como “bola murcha” e “bola cheia”.
No sábado (3/12), nos suspiros finais da edição do Jornal Nacional, William Bonner e Fátima Bernardes voltaram requentar o assunto, que estava em fogo brando ainda, bem longe do cozimento final: “A gente lembra que vamos ter uma edição especial na segunda-feira. Este momento especial na história do Jornal Nacional” – prometeu, com seu carisma e charme únicos, a encantadora apresentadora. Enquanto isso, no domingo (4), no apagar das luzes daquela edição do Fantástico, a massa de sintonizados na Globo passou a acompanhar, já em clima de novela, o adeus de Patrícia Poeta como apresentadora do programa. E, como só podíamos esperar, fomos brindados com uma extensa lufada de elogios de Tadeu Schmidt à bela apresentadora, sem deixar de mencionar que – algo tão útil à manutenção da ordem do planetas no sistema solar – “sentirei a sua falta”.
Nova cláusula no contrato
Chega a segunda-feira (5/12) e o Jornal Nacional entra em transe, embevecido com seu duradouro sucesso, disposto a elevar sua troca de cadeiras (algo que mereceria não mais que uma frase de anúncio) em evento de histórica magnitude. As trajetórias de Patrícia Poeta e de Fátima Bernardes receberam tratamento especial, com edição de imagens cobrindo décadas e locução que, por muito pouco, não beirava o dramático do próprio William Bonner. A troca de elogios entre si, os elogios direcionados à própria Globo e esse estranho desejo de autolouvação também, por pouco, não inaugurava novo tipo de programa de entretenimento: como transformar rotina de trabalho de empresa de televisão em notícia campeã de audiência.
Quando o jornalismo de uma emissora de televisão – e não uma emissora qualquer, mas a líder de audiência ao longo de décadas – passa a transformar seus jornalistas em foco da notícia é sinal de que algo de muito errado, para dizer o mínimo, deve estar acontecendo com a compreensão do que costuma ser inferido como jornalismo.
Se a moda pega, não tardará para que a contratação de novos jornalistas, de novos apresentadores de telejornais e/ou de secos e molhados – não apenas os da Globo, mas também os da Record, SBT e Band – passe a trazer na minuta do contrato de trabalho, cláusula com o seguinte teor:
“A Empresa Contratante obriga-se a, no caso de dispensa do Contratado, por qualquer que seja o motivo, a produzir e exibir em seu telejornal de maior audiência, e também em seus programas de variedades, em horário nobre, farto material de louvação, admiração, gratidão e reconhecimento explícito ao talento, ao profissionalismo, ao carisma do Contratado, não deixando de gravar depoimentos de natureza louvatória por parte de seus colegas de mister e, em especial, daqueles colegas que venham a ser apontados pelo Contratado.
§ 1º. A despedida deverá ocorrer em etapas, em período não inferior a três dias, e sempre, também, em horário nobre.
§ 2º. No intervalo de uma semana deverão ser veiculados três blocos diários de ‘Plantão Urgente’, anunciando a despedida tratada no parágrafo anterior.”
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[Washington Araújo é mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter]