Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Novela aliena tanto quanto Twitter e religião

Na semana em que a telenovela completa 60 anos no Brasil, o UOL Televisãopreparou uma cobertura especial sobre o tema. Além de um quiz de 60 perguntas, distribuídas em cinco categorias, preparadas pelo mais novo blogueiro do portal, o estudioso e pesquisador da telenovela Nilson Xavier, será publicada uma série de entrevistas especiais. A primeira, no ar nesta segunda (19), é com a atriz Regina Duarte. Gravado no MIS (Museu da Imagem e do Som) de São Paulo, o material abrange desde o início de sua carreira na TV Excelsior até conjecturas sobre o papel social da novela no Brasil. “[Novela] aliena… So…?”, questiona a atriz.

O que foi que mudou no processo de produção da telenovela desde a sua primeira novela até esta última que você fez?

Regina Duarte –Eu me lembro que as gravações na Excelsior, onde eu comecei, eram feitas nos estúdios da Vera Cruz em São Bernardo do Campo. E gravava-se de uma maneira muito inusitada. Hoje se grava de maneira "clipada". O que antes era uma cena, hoje são 20 cenas, porque a câmera muda de posição, porque a luz muda também, então você tem uma cena de uma página e meia que se torna oito ou nove cenas. Isso porque o diretor quer em cada momento da cena mostrá-la de um ângulo, que é uma linguagem cinematográfica que a televisão absorveu. Então, quando eu comecei, os cenários de uma novela eram todos montados, não sei se havia uma ordem, mas o fato é que eles estavam todos lá. Você imagina um retângulo, com os cenários montados nas paredes desse retângulo, com o interior cheio de câmeras, iluminação. E a câmera ia percorrendo esses cenários. Era louquíssimo, porque é como se fosse ao vivo…

Mais ou menos como o filme “Festim Diabólico”, de Alfred Hitchcock [que foi todo filmado em tomadas ininterruptas]?

R.D. –Exato. E havia um desafio proposto pelo [Walter] Avancini [diretor] de ninguém errar. De correr de um cenário para o outro, de uma câmera focalizar em um ator e a outra já correr para outro cenário enquanto o outro ator saía do primeiro… E se era o mesmo ator que aparecia na cena seguinte, a câmera focalizava num detalhe do cenário, por exemplo. Isso tudo, claro, quando tinha continuidade da ação. E era genial! Porque, para a gente, era uma gincana. Era uma coisa muito estimulante. E havia um orgulho de não errar, de conseguir, de participar, de fazer até cinco cenas direto. Sem corte e sem interrupção…

Conforme a produção da novela ficou mais industrial, começaram a surgir dois tipos de problema, segundo ouvimos relatos de alguns atores. Um é a divergência de orientação de personagem entre diretores. O outro é a falta de tempo dos diretores para orientar os atores. Acontece isso contigo?

R.D. –Acho que para os veteranos, grupo no qual eu me incluo, a gente já sabe que o tempo é exíguo, que os diretores não vão dar conta de te dar atenção o tempo todo ao longo da novela. Então, você tem que aproveitar muito as reuniões que antecedem o início das gravações, que é ali que as coisas têm de ser esclarecidas. E mesmo assim isso muda. Eu vejo muito, bem menos comigo, colegas que começam um papel com uma impostação que os autores e diretores orientaram e, no meio da novela, eles pedem para mudar a trama, o texto, a proposta e pedem para o ator realmente esquecer o que foi combinado lá atrás. Principalmente os que estão iniciando ficam mais atrapalhados ainda. Não é fácil, porque é uma obra aberta, que sofre influências de todos os tipos. Nesse ponto, também quando eu comecei na Globo, tinha “El Brujo”, o Homero Icaza Sanchez, que era uma baliza que evitava exatamente esses "achismos", porque ele vinha com uma pesquisa de público, de mercado e de audiência e definia os padrões.

Você já sentiu essa influência externa em algum de seus personagens?

R.D. –Antes de citar esse exemplo, eu lembro que a gente dizia: “Gosto de TV por isso, isso e isso. E de teatro eu gosto porque a resposta é imediata.” Hoje, na TV, a resposta também imediata. Eu não tenho, mas se você tiver Twitter, Facebook e todas essas comunidades da internet, você imediatamente fica sabendo se a tua cena bateu. Na hora até. Então, olha como mudou…

Citando o exemplo, agora. Quando o Maneco me convidou para fazer “Por Amor”, ele me contou que a minha personagem doava o filho. Eu disse: “Nossa, que forte!” E aquilo ficou. Fomos para Veneza, gravamos, e quando chegou o momento da doação, que o neto morria, entrou uma coisa na qual eu não tinha pensando e que eu não sei até que ponto o Maneco tinha pensado, que era o marido… Uuuuuuui, até me arrepia! (esfrega os braços) Entrou um pai, louco para ser pai! Traído em sua paternidade! Cujo filho tinha morrido entre aspas… Eu me lembro de uma cena que me deixa arrasada! E o Maneco não maneirou. Poderia ter maneirado, mas não maneirou. O Maneco pôs uma cena do Atílio chegando ao hospital com um ramalhete de flores, saltitante! Ai, gente! Não é horrível isso?… (põe um braço sobre o rosto com riso de aflição) É de chorar, né? E ela pegou o filho e deu para a filha! Esqueceu o marido! Esqueceu esse cara que ela amava! Quando cai a ficha e ela o abraça e fala “Perdemos! Perdemos!” Era um horror! E aí ela vai pra capela, chora feito uma condenada ao sofrimento! (risos) Coisa trágica, né? E grandiosa, linda, eu adoro essa novela! Eu acho essa novela um clássico, antológica! E pra mim foi muito duro fazer. Eu estava trabalhando com a minha filha. Eu estava vendo a minha filha, que não era casada, não tinha namorado nem nada, amamentando um bebê que entre aspas era meu! Eu não sei como a minha cabeça não fundiu! Profissão maluca, essa nossa!

Falando em clássicos, fala um pouco da Porcina…

R.D. –Quando eu fui chamada, me deram a sinopse, alguns capítulos, eu não sabia nada da novela. Então eu pedi alguma orientação. Eles me disseram assim: “Ela é operística, Regina. Pensa nela como se ela estivesse sempre em cena cantando uma opera!” Eu fui por aí… Mas a personagem era exagerada mesmo… Porcina não era uma mulher normal…

E a Maria do Carmo de “Rainha da Sucata”?

R.D. –Então… Sei lá… Eu gosto dessas mulheres acima do tom da realidade. Porque, se for pra mostrar realidade, faz um documentário. Põe lá uma mulher de verdade pra fazer… Já que estamos falando de ficção, vamos dar uma apimentada nessas mulheres! Eu gosto de subir o tom…

Quando você percebeu que o seu trabalho como atriz tinha um reflexo importante na vida cotidiana das pessoas que te assistiam?

R.D. –Para esse exemplo o que me vem à cabeça é “Vale Tudo”. O fato de a Raquel ter ficado zerada com todas as traições da Maria de Fátima e começar do nada. De alguns trocados ela comprar algumas coisas na padaria e fazer os primeiros sanduíches e daí para a frente se reerguer e se tornar uma pessoa vitoriosa na vida, eu acho que ali a gente transpôs a quarta parede e passou a ser um estímulo de força, de resistência para algumas pessoas da sociedade que estavam precisando desse estimulo para resistir sem medo. Dá para fazer, dá para superar, dá para parar de olhar para as derrotas do passado e acreditar numa vitória futura! Vira e mexe alguém me para e me diz: “Ah, o teu personagem me ajudou tanto a superar um momento difícil…” É lindo de ouvir…

Você fica emocionada?

R.D. –Fico, fico muito.

Já chorou vendo alguma cena sua?

R.D. –Cena minha não, mas já me emocionei muito com alguns relatos de gente que estava na pior, no fundo do poço, que estava sofrendo por levar a vida sem pai, sem mãe e sem marido e que por causa de “Malu Mulher” viram que dava para seguir em frente. Então, isso me emociona…

Muita gente diz, principalmente os mais jovens e mais revolucionários, que a novela aliena. O que você acha disso?

R.D. –Aliena… So…? Tanta coisa aliena…

Você não vê problema?

R.D. –Não. O Twitter aliena, o cinema aliena… Tudo que não é engajado [aliena]? Eu acho que esse pensamento é tão decadente, retrógrado. É um raciocínio que não acompanhou o mundo em suas transformações. O que aliena às vezes é a religião. Tudo aquilo que te dê prazer? É uma coisa que te aliena em detrimento de outra, não é? Então, que eleição vamos fazer hoje? O que não deve ser alienado? Acho que tem que dar mais liberdade para as pessoas escolherem e serem responsáveis pelas suas escolhas…

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[James Cimino e Mauricio Stycer são, respectivamente, editor-assistente de UOL Entretenimento e crítico do UOL]