A obsessão da mídia em esclarecer se Adriano atirou ou não em sua noctâmbula acompanhante a faz cega, surda e muda para indagar, especular e cutucar o que realmente interessa: por que um astro, capaz de merecer o epíteto de Imperador da própria, anda pelas madrugadas afora com gente armada?
A arma era do seu segurança, diriam os mais, digamos, complacentes. Pois então, que raios de profissional é este, capaz de permitir que seu instrumento de trabalho, sujeito a cadastros, portes, portarias e licenças, além de objeto de cívicas e cíclicas campanhas de desarmamento, faça as vezes de brinquedinho dos seus alegres, descolados e supostamente protegidos?
A questão, na verdade, remete a um cacoete da nossa imprensa – esportiva e todas as outras – encravado em seu próprio DNA: a postura aberta, derramada e assumidamente absolutória frente a tudo que se relacione ao comportamento dos nossos jogadores de futebol. Há aqui razões até mesmo antropológicas para tanto. A figura do menino pobre de marré, parido e criado em favelas, cortiços e alagados que, mesmo famélico e desnutrido, foi capaz de lapidar seu talento nas várzeas remotas e de chão batido, até o dia em que um olheiro o descobre e o unge craque, se fez em um ícone cuja intocabilidade bem explica nossa latina opção preferencial em cultuar a miséria.
O advento de Garrincha foi um marco histórico. Verdadeiro e único artista da bola, era inocente, ingênuo e alienado o suficiente mesmo para ser diagnosticado como um paciente borderline. Seu fim, paupérrimo e destroçado pelo álcool, foi coerente com sua desdita. Uma certa racionalidade, mínima que fosse, nos guiaria a considerá-lo, sem prejuízo da sua genialidade, algo como um acidente genético isolado: infeliz (a cabeça avoada), portador do defeito nas pernas (alçado a atributo anatômico digno de um deus grego) e perdulário com seu maior tesouro (a própria vida).
Cena de novela
Mas não. Garrincha impregnou-se no inconsciente coletivo na conta de herói-vítima-exemplo-a-ser-seguido. E a mídia, alegre e irresponsável, sopra as trombetas com força, seus arautos a pontificar que o que importa é a busca enfermiça por outros garrinchas. Replicá-lo é a tradução da patológica incapacidade de uma gente em resolver seus mortos. Ele seria, assim, o Perón dos nossos gramados.
E as falsificações brotam ao ritmo das goleadas. O talentosíssimo meia Carlos Alberto queima sua carreira a vagar de time em time feito um bandoleiro. Escoiceia colegas, ofende juízes e briga com os patrões. Em vez de a mídia classificá-lo como elemento desagregador, incapacitado para o esporte, e de espinafrá-lo, como toda figura pública está sujeita, passa as mãos em sua cabeça, sugerindo nas entrelinhas que ele é um incompreendido. Wagner Love escala a Rocinha de não tanto antanho escoltado por um destacamento digno de um cacique talibã, em que metralhadoras são brandidas como se bandeiras de clubes fossem, e declara candidamente que tem negócios caritativos na favela. A mídia engole sem tugir nem mugir.
Termino este texto vendo Adriano na TV, saindo sorridente e gloriosamente da delegacia, focos, flashes e holofotes a chancelar sua inocência e seu resgate ao mundo dos semideuses, adorados e inimputáveis. A cena, de tão repetitiva, no entanto, longe de evocar momentos majestáticos, fica mais para novela mexicana. Mas, como bem disse Janio de Freitas (Folha de S.Paulo, 28/12), “é preciso que Adriano seja o bom rapaz inocente de sempre”.
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[José Antonio Palhano é médico]