Embora consagrada, acho redundante a expressão “jornalismo investigativo”. Ou “jornalismo de investigação”. Porque todo jornalismo pressupõe investigação.
Uma vez, nos anos 1970, acompanhei durante duas semanas o capuchinho italiano Frei Damião por terras de Pernambuco, Paraíba e Alagoas. Ele era uma espécie de padre Cícero Romão Batista reencarnado. Decorara uma dúzia de sermões em português desde que chegara da Itália e os repetia em todos os lugares. Ameaçava os pecadores com as chamas do inferno. Condenava a pílula anticoncepcional e desancava com a minissaia. Tinha fama de milagreiro. Atraía multidões de desesperados.
Eu trabalhava na revista Manchete. E ela encomendara um perfil do frade. Pois bem: o perfil me deu menos trabalho do que a cobertura da primeira noite do velório de Frei Damião que eu faria para o jornal Correio Braziliense quase 30 anos depois. Não meço o trabalho, no caso, pelo número de horas que gastei – mas pelo número de pessoas que ouvi e pelo esforço de imaginação que fiz – principalmente pelo esforço de imaginação.
Foi moleza seguir Frei Damião durante duas semanas e contar o que vi – era rica a variedade de situações e de personagens. Foi duro produzir um texto atraente sobre o que ocorreu num período de 12 horas dentro de uma basílica no Recife, onde jazia o corpo do frade, e na praça defronte, onde se aglomeravam algumas centenas de peregrinos. Quando a imaginação está a serviço da ficção, creio que é mais fácil se valer dela. Mas quando está a serviço do relato de um fato, não. A imaginação, no jornalismo, serve para que você tente enxergar além do óbvio. Para que você diga mais sem dizer demais. É perigosa, se mal usada. Requer muito cuidado.
Investigação exaustiva
Cito outro exemplo para reforçar o que quero dizer.
Ainda nos anos 1970, quando eu era repórter da sucursal do Jornal do Brasil no Recife, o então prefeito de Caruaru, Drayton Nejaim, sequestrou a própria mulher, a deputada Aracy Nejaim, surrou-a com uma pá e fugiu com ela. Foi um escândalo nacional. Que mobilizou toda a mídia, Polícia Federal e diversos governos estaduais. Dali a duas semanas, Aracy reapareceu no Recife. E Drayton sumiu aos cuidados dos seus advogados.
O jornal me encarregou de tentar encontrá-lo. Rodei muito a bolsinha para o conseguir. E foi pura sorte ter conseguido. O jornal publicou de título: “JB localiza Drayton Nejaim”. Tive minhas poucas horas de glória. Muito bem. Mas meu esforço de reportagem para entrevistar Drayton foi menor, muito menor do que o esforço que fiz para confirmar a suspeita de que as fotografias publicadas em outubro de 2004 pelo Correio Braziliense como se fossem do jornalista Vladimir Herzog, nu e humilhado, não eram dele. Soube que poderiam não ser dele por uma antiga fonte de informações que tinha na área da inteligência do governo. Primeiro, a fonte me disse que as fotos eram de um padre que havia sido torturado pelo extinto Serviço Nacional de Informações – mas que não sabia o nome dele. Depois me disse que o padre se chamava Alípio de Freitas – um preso político dos anos 1970.
Registrei o número de pessoas que procurei por telefone tentando confirmar a informação antes de publicá-la no meu blog: exatas 42. De padres e bispos de Pernambuco a ex-padres e freiras do Rio, São Paulo e Brasília. Tudo isso só para localizar o ex-padre Alípio, que mora perto de Lisboa e que eu não sabia onde morava. Uma vez que Alípio me disse que o homem das fotos não era ele, voltei a consultar parte das 42 pessoas que tinha procurado antes – e entrevistei mais 11. Foi quando consegui “fechar” a história de que o homem das fotos era um padre canadense.
Então, meus caros, denunciar um escândalo ou um erro, contar a história de um acidente de carro ou de uma eleição fraudada, exige investigação. E exaustiva, muitas vezes. Claro, se quisermos fazer bom jornalismo…
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[Ricardo Noblat é jornalista]