Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A imprensa que se merece

“Uma canção não pode ser uma solução. É, ao contrário, uma pequena felicidade, uma coisinha para suportar o quotidiano”. Este comentário de Benjamin Biolay, um renomado compositor e cantor da atualidade musical francesa, faz parte de uma entrevista que ele e sua parceira Juliette Gréco (a lendária musa dos existencialistas parisienses) concederam à revista semanal do Le Monde (14/1/2012).

A frase do compositor não pode deixar de chamar a atenção do observador de imprensa que, ausente por pouco mais de um mês do país, lê comparativamente jornais franceses e brasileiros. Por mais global que seja a crise editorial do jornalismo clássico (jurássico, diriam alguns), salta aos olhos uma diferença qualitativa das pautas. A impressão que se tem é que, aqui (especialmente no Rio de Janeiro), ao contrário da reflexão do compositor francês, a canção – tomada como metonímia do espetáculo – assume as proporções de definição de cultura pública nacional.

Claro, estamos bem cientes da importância da canção no cenário público mundial. É muito admissível a hipótese de Tim Blanning (cf. O Triunfo da Música, Editora Companhia das Letras, 2011) de que a música, beneficiando-se de todas as inovações tecnológicas, atingiu na contemporaneidade uma posição de supremacia frente às demais práticas artísticas, como a literatura, as artes plásticas, o cinema e o teatro. Sem fazer distinções culturalmente hierárquicas entre a música erudita e a canção popular, ele atribui aos grandes nomes da canção mundial, os popstars, uma capacidade de influenciar mudanças políticas, sociais e culturais, sem paralelo com outros artistas.

Cultura do espetáculo

Esse posicionamento pode ser discutível, mas o fato é que, em sua potência de automodelagem, a música faz-se de algum modo mimese, não na acepção platônica de “cópia”, mas na aristotélica de “jogo”, que se entende também como poiesis,uma forma vívida de fazermos a experiência da realidade ou, em termos da filosofia clássica, como “uma ocupação que é agradável por e para ela mesma”. E o grande mobile do jogo é a comunicação:

“Jogar na ausência de espectadores humanos passaria como loucura. Tudo isso tem, pois, uma relação essencial com a sociabilidade, e aquilo que nós mesmos experimentamos no imediato é inteiramente secundário. A comunicação, e aquilo que a partir daí se reflete sobre nós, é a única coisa que nos atrai” (Immanuel Kant em Réflexions).

De fato, a observação da dinâmica cultural na contemporaneidade tem evidenciado que a música, em sua forma mais popular, a canção, cria um real próprio, às vezes um “real em estado selvagem”, que permite um “renascimento” em termos de identidade pessoal e coletiva. A palavra “jogo” é certamente mais adequada do que “arte”, porque não se trata da fabricação externa de algo, e sim de uma experiência forte que modela tanto o criador quanto o seu público.

Mais do que “arte”, está aí em questão a “experiência estética”, cuja definição é ao mesmo tempo abrangente e vaga no pragmatismo filosófico de um educador como John Dewey, por exemplo. A experiência estética que gira ao redor da canção, mas se completa em looks particulares (roupas, adornos, piercings, tatuagens, estilos de vida etc.), senão em drogas, faz parte da condição “marginal” dos jovens desde os anos 1950. O que começou naquela época como rock’n roll e se estende até hoje como funk ou hip-hop é, na verdade, uma série de experiências com formas somáticas de resistência e satisfação.

Nada disso é novidade, disso tudo bem se sabe. Mas também se sabe que, ao mesmo tempo, nesse contexto de mutações significativas, trabalho, comunicação, arte e, mesmo, amor dependem cada vez mais dos objetivos das partidas jogadas pelo dinheiro. Em outras palavras, essa cultura do espetáculo que compõe a substância do tempo atual e do mundo vivido por cada um de nós tem parte ligada com a hegemonia do mercado e, portanto, com a ideologia de financeirização do mundo.

Pergunta incômoda

Seria, assim, perfeitamente natural que a comunicação social ou o jornalismo stricto sensu fosse totalmente absorvido por essa nova configuração da realidade e daí resultasse algo que já se insinua nas pautas da imprensa brasileira de hoje, em que a notícia, em sua acepção histórica, vem dando lugar à fofoca (a exemplo das redes sociais) e aos informes e relatos sobre o mundo do espetáculo.

Noticiário, colunas intelectualizadas e colunas de faits-divers debruçam-se com sofreguidão cansativa sobre os detalhes existenciais de personagens repetidas, exatamente como no Twitter ou no Facebook. Cada novo show,seja boa ou reles a sua promessa, é conotado como História nacional.

E daí? Poderia perguntar alguém angelicamente afinado com esse suposto espírito do tempo. Afinal de contas, seria isso mesmo o que deseja o cidadão já redefinido por alguns autores como “cidadão-consumidor”. Todos estariam satisfeitos ou confortáveis com a história virtualizada no espetáculo.

Mas um espírito de porco poderia também indagar: será este mesmo o destino de um jornalismo comprometido com a elucidação da realidade? Será que a História real acabou? O parceiro de Juliette Gréco, por mais mergulhado que esteja na cultura do espetáculo, parece pensar que não.

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[Muniz Sodré é jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro]