“Uma manchete falsa é um dos danos mais graves que podem ser infligidos à credibilidade de um jornal de referência. E é também um sinal de alerta para vulnerabilidades sérias no plano da organização e controlo editoriais. Por isso me ocupo hoje do título com que este jornal surgiu nas bancas na passada segunda-feira — ‘Passos já fez mais nomeações do que primeiro Governo de Sócrates’ —, apesar de o erro já ter sido reconhecido, em nota da Direcção Editorial publicada na edição seguinte.
Os leitores que de imediato protestaram contra essa manchete não precisaram de tomar conhecimento de um desmentido para se aperceberem do erro patente, com grande visibilidade, na capa do jornal. Bastava ler o texto e consultar o gráfico das páginas seguintes para se perceber que os títulos escolhidos, na capa e no interior, expunham uma conclusão insustentável, resultante de se ter pretendido’comparar’ o que não é comparável: as nomeações feitas durante um período de dois meses e meio pelo primeiro executivo chefiado por José Sócrates e as que o actual governo efectuou durante os sete meses que leva no exercício do poder.
É inaceitável que o erro que qualquer leitor menos distraído poderia detectar folheando o jornal na manhã de segunda-feira tenha passado sem sobressalto pelo crivo dos mecanismos profissionais de edição doPÚBLICO. E será ainda pior, mas no plano deontológico, se alguma consciência houve da impropriedade dos processos seguidos neste trabalho.
Na verdade, estava tudo errado na manchete do dia 16. O critério de comparação utilizado, sendo ele próprio discutível, teria necessariamente de conduzir, se tivesse sido usado com o mínimo de seriedade, à conclusão oposta ao que se afirmou na manchete. Como nota a directora do jornal, Bárbara Reis, em resposta às questões que lhe coloquei sobre este caso, não só ‘as comparações entre as nomeações dos vários governos’ deveriam ter obrigado à utilização de ‘uma base temporal comum que as legitimasse’, como, ‘mais ainda, se dividíssemos o total de nomeações pelo número de meses, obteríamos como resultado que o actual governo fez proporcionalmente menos nomeações do que os anteriores’. O contrário, afinal, do que se noticiou.
Acresce que o que se escreveu a letras gordas na primeira página estaria sempre tecnicamente errado, mesmo abstraindo do anómalo critério usado para comparar números de nomeações. ‘Passos já fez mais nomeações do que primeiro Governo de Sócrates’ significa que o actual primeiro-ministro nomeou, em sete meses, mais gente do que o seu antecessor em mais de quatro anos, que foi quanto durou o executivo formado após as eleições de 2005. O que não só é grosseiramente falso como não corresponde sequer ao que se pretenderia afirmar, pois tanto o texto como a infografia das páginas 2 e 3 explicavam que só foram considerados dois meses e meio (os iniciais, presume-se) da vida desse governo.
Não foram só as escolhas dos títulos que mancharam uma iniciativa editorial que, a ter sido executada de acordo com as boas regras profissionais, teria o mérito de proporcionar aos leitores o desejável escrutínio da política de nomeações para cargos públicos de um governo cujo líder garantiu em campanha — tal como, aliás, os seus antecessores — que romperia com a nefasta lógica clientelar das escolhas feitas com base no cartão partidário. É do interesse público saber se o actual primeiro-ministro está ou não a cumprir e a fazer cumprir essa promessa (alguns factos referidos no confuso trabalho publicado sugerem que não estará), e se tem ao menos vindo a reduzir o peso da colonização do Estado pelos aparelhos partidários (os números já conhecidos parecem indicar que sim, até à data, mas as limitações da informação disponível dificultam uma percepção exacta). Para esclarecer este ponto, uma comparação com as práticas de governos anteriores faria todo o sentido, se tivesse sido feita com um mínimo de rigor.
Não deve esquecer-se, no entanto, que o escrutínio das nomeações governamentais, para ser útil e permitir formar opiniões com base numa informação correcta, não pode limitar-se a uma contabilização de despachos. Nem sequer, embora esse dado seja certamente relevante, ao conhecimento da filiação partidária (se a têm) dos nomeados. O que mais importará à opinião pública e à desejável transparência no preenchimento de cargos dirigentes é saber se as opções governamentais são feitas com base no mérito pessoal e na competência profissional dos escolhidos. E, para isso, o que importa conhecer é o seu currículo e história pessoal. Se o poder político disponibiliza esses dados, é papel do jornalismo verificá-los. Se o não faz, é dever do jornalismo investigá-los. Se uma análise global é inviável, o inquérito deve dar prioridade aos que são indicados para cargos de maior relevância na administração pública. Em qualquer caso, investigar uma política de nomeações não é contar nomes no Diário da República.
Por outro lado, uma iniciativa editorial como esta não deve limitar-se a debitar valores quantitativos. Se a ambição é esclarecer bem os leitores, importa discriminar qualitativamente a informação, o que no trabalho publicado é feito sem a ênfase ou o cuidado apropriados, e em alguns aspectos é ignorado. Alguns exemplos: importa distinguir entre novas nomeações e reconduções (os números exibidos na capa do PÚBLICO não o fazem), entre a composição de gabinetes ministeriais e os cargos dirigentes da administração (é nestes que deve concentrar-se a atenção a critérios de ‘confiança política’ que possam fomentar o clientelismo e abrir portas à mediocridade), e ainda entre as posições de maior responsabilidade e as restantes (a relevância pública da escolha de um director-geral não é a mesma da de um motorista, embora ambas integrem a lista global de nomeações).
Outro aspecto criticável na edição do dia 16 é o facto de a infografia publicada na capa ter o título ‘Nomeações feitas nos primeiros meses de actividade pelos últimos cinco governos’, ocultando o que se descobre nas páginas seguintes: que esses ‘primeiros meses’ significam períodos de tempo muito diferentes entre si. A falta de rigor era agravada no editorial, que assumia como boas as conclusões retiradas de comparações ilegítimas, e recorria ao conceito ainda mais vago de nomeações feitas pelos governos ‘num primeiro tempo’.
A nota que na edição seguinte, no interior do jornal, reconhecia e corrigia o erro da manchete da véspera deve ser saudada como um gesto indispensável ao restabelecimento da confiança dos leitores que acusaram o PÚBLICO de ‘manipulação’ e ‘má-fé’. Revelar-se-á credível se forem tomadas as medidas necessárias para que não se justifiquem no futuro reclamações semelhantes às desta ‘segunda-feira negra’. Na mesma página, porém, uma nova notícia deixava por esclarecer as discrepâncias, reafirmadas, entre dados divulgados por governantes e números ‘apurados pelo PÚBLICO’, e dava a conhecer que no portal do governo na Internet fora actualizada a contabilização das nomeações já efectuadas (1682, das quais 962 reconduções). Essa informação, aliás, estava disponível desde domingo (mas ‘já fora do nosso horário de fecho’, garante o jornalista João d’Espiney, autor da peça principal da edição de 16 de Janeiro).
Considero também criticável que na primeira página da edição de terça-feira não tenha sido feita qualquer referência ao facto de a manchete da véspera não ser verdadeira. Mereciam-no os leitores fiéis e todos os que no dia anterior tenham olhado, nas bancas, para a capa do PÚBLICO. A agravar essa lacuna, surgia, com destaque, uma chamada intitulada ‘Nomeações / Caiu o ‘trovão da desconfiança’ e acabou o estado de graça do Governo’, que remetia para textos de opinião sobre as recentes e contestadas escolhas para cargos de topo nas empresas EDP e Águas de Portugal e os seus efeitos para a imagem do governo de Passos Coelho. Na capa, porém, falava-se apenas, genericamente, em ‘nomeações’, num exercício de ambiguidade que sugeria ao leitor incauto que a ‘desconfiança’ e o fim do ‘estado de graça’ do governo viriam na sequência da manchete de segunda-feira.
O jornal deve agora reparar o erro cometido e informar os leitores sobre o que realmente se passa em matéria de nomeações governamentais. Bárbara Reis assegura que ‘esse trabalho está em curso e consistirá na comparação das nomeações feitas pelo actual governo num período de sete meses — o referente usado neste trabalho para o executivo Passos Coelho — com um período idêntico para os restantes governos’. Permito-me sugerir que o esforço não se limite à leitura anotada do Diário da República.
Entre as causas deste desastre jornalístico, a directora refere ‘a escolha de um critério errado pelo jornalista’ e ‘o acompanhamento inadequado do trabalho’ pela direcção. E conclui que ‘faltou sangue frio para, quando o trabalho foi entregue ao fim do dia de domingo, cancelar a sua publicação, escolher outro tema para aquelas páginas e repaginar todo o jornal’.
Por mim, quanto às lições a tirar deste caso, julgo que a ênfase deve ser colocada na revisão dos mecanismos de escrutínio interno do processo de produção das notícias. Um jornal como o PÚBLICO não pode dispensar meios de controlo editorial hierárquico que garantam a qualidade e o rigor da informação que publica. A credibilidade e o respeito pelos leitores são incompatíveis com a leviandade ou o desleixo no enquadramento do trabalho redactorial. Vale a pena reflectir, mesmo se as considerarmos excessivas, nas palavras de Manuel Vaz, um dos leitores que protestaram contra a manchete do dia 16. Dizendo recear que o jornal queira ‘distinguir-se por títulos pomposos, mas totalmente inadequados a quem tenha dois dedos de testa’, avisa: ‘Não é bom caminho; ou então é, mas enganam-se no alvo’.’”