Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

José Queirós

“Uma man­chete falsa é um dos danos mais gra­ves que podem ser infli­gi­dos à cre­di­bi­li­dade de um jor­nal de refe­rên­cia. E é tam­bém um sinal de alerta para vul­ne­ra­bi­li­da­des sérias no plano da orga­ni­za­ção e con­trolo edi­to­ri­ais. Por isso me ocupo hoje do título com que este jor­nal sur­giu nas ban­cas na pas­sada segunda-feira — ‘Pas­sos já fez mais nome­a­ções do que pri­meiro Governo de Sócra­tes’ —, ape­sar de o erro já ter sido reco­nhe­cido, em nota da Direc­ção Edi­to­rial publi­cada na edi­ção seguinte.

Os lei­to­res que de ime­di­ato pro­tes­ta­ram con­tra essa man­chete não pre­ci­sa­ram de tomar conhe­ci­mento de um des­men­tido para se aper­ce­be­rem do erro patente, com grande visi­bi­li­dade, na capa do jor­nal. Bas­tava ler o texto e con­sul­tar o grá­fico das pági­nas seguin­tes para se per­ce­ber que os títu­los esco­lhi­dos, na capa e no inte­rior, expu­nham uma con­clu­são insus­ten­tá­vel, resul­tante de se ter pretendido’comparar’ o que não é com­pa­rá­vel: as nome­a­ções fei­tas durante um período de dois meses e meio pelo pri­meiro exe­cu­tivo che­fi­ado por José Sócra­tes e as que o actual governo efec­tuou durante os sete meses que leva no exer­cí­cio do poder.

É ina­cei­tá­vel que o erro que qual­quer lei­tor menos dis­traído pode­ria detec­tar folhe­ando o jor­nal na manhã de segunda-feira tenha pas­sado sem sobres­salto pelo crivo dos meca­nis­mos pro­fis­si­o­nais de edi­ção doPÚBLICO. E será ainda pior, mas no plano deon­to­ló­gico, se alguma cons­ci­ên­cia houve da impro­pri­e­dade dos pro­ces­sos segui­dos neste trabalho.

Na ver­dade, estava tudo errado na man­chete do dia 16. O cri­té­rio de com­pa­ra­ção uti­li­zado, sendo ele pró­prio dis­cu­tí­vel, teria neces­sa­ri­a­mente de con­du­zir, se tivesse sido usado com o mínimo de seri­e­dade, à con­clu­são oposta ao que se afir­mou na man­chete. Como nota a direc­tora do jor­nal, Bár­bara Reis, em res­posta às ques­tões que lhe colo­quei sobre este caso, não só ‘as com­pa­ra­ções entre as nome­a­ções dos vários gover­nos’ deve­riam ter obri­gado à uti­li­za­ção de ‘uma base tem­po­ral comum que as legi­ti­masse’, como, ‘mais ainda, se divi­dís­se­mos o total de nome­a­ções pelo número de meses, obte­ría­mos como resul­tado que o actual governo fez pro­por­ci­o­nal­mente menos nome­a­ções do que os ante­ri­o­res’. O con­trá­rio, afi­nal, do que se noticiou.

Acresce que o que se escre­veu a letras gor­das na pri­meira página esta­ria sem­pre tec­ni­ca­mente errado, mesmo abs­traindo do anó­malo cri­té­rio usado para com­pa­rar núme­ros de nome­a­ções. ‘Pas­sos já fez mais nome­a­ções do que pri­meiro Governo de Sócra­tes’ sig­ni­fica que o actual primeiro-ministro nomeou, em sete meses, mais gente do que o seu ante­ces­sor em mais de qua­tro anos, que foi quanto durou o exe­cu­tivo for­mado após as elei­ções de 2005. O que não só é gros­sei­ra­mente falso como não cor­res­ponde sequer ao que se pre­ten­de­ria afir­mar, pois tanto o texto como a info­gra­fia das pági­nas 2 e 3 expli­ca­vam que só foram con­si­de­ra­dos dois meses e meio (os ini­ci­ais, presume-se) da vida desse governo.

Não foram só as esco­lhas dos títu­los que man­cha­ram uma ini­ci­a­tiva edi­to­rial que, a ter sido exe­cu­tada de acordo com as boas regras pro­fis­si­o­nais, teria o mérito de pro­por­ci­o­nar aos lei­to­res o dese­já­vel escru­tí­nio da polí­tica de nome­a­ções para car­gos públi­cos de um governo cujo líder garan­tiu em cam­pa­nha — tal como, aliás, os seus ante­ces­so­res — que rom­pe­ria com a nefasta lógica cli­en­te­lar das esco­lhas fei­tas com base no car­tão par­ti­dá­rio. É do inte­resse público saber se o actual primeiro-ministro está ou não a cum­prir e a fazer cum­prir essa pro­messa (alguns fac­tos refe­ri­dos no con­fuso tra­ba­lho publi­cado suge­rem que não estará), e se tem ao menos vindo a redu­zir o peso da colo­ni­za­ção do Estado pelos apa­re­lhos par­ti­dá­rios (os núme­ros já conhe­ci­dos pare­cem indi­car que sim, até à data, mas as limi­ta­ções da infor­ma­ção dis­po­ní­vel difi­cul­tam uma per­cep­ção exacta). Para escla­re­cer este ponto, uma com­pa­ra­ção com as prá­ti­cas de gover­nos ante­ri­o­res faria todo o sen­tido, se tivesse sido feita com um mínimo de rigor.

Não deve esquecer-se, no entanto, que o escru­tí­nio das nome­a­ções gover­na­men­tais, para ser útil e per­mi­tir for­mar opi­niões com base numa infor­ma­ção cor­recta, não pode limitar-se a uma con­ta­bi­li­za­ção de des­pa­chos. Nem sequer, embora esse dado seja cer­ta­mente rele­vante, ao conhe­ci­mento da fili­a­ção par­ti­dá­ria (se a têm) dos nome­a­dos. O que mais impor­tará à opi­nião pública e à dese­já­vel trans­pa­rên­cia no pre­en­chi­mento de car­gos diri­gen­tes é saber se as opções gover­na­men­tais são fei­tas com base no mérito pes­soal e na com­pe­tên­cia pro­fis­si­o­nal dos esco­lhi­dos. E, para isso, o que importa conhe­cer é o seu cur­rí­culo e his­tó­ria pes­soal. Se o poder polí­tico dis­po­ni­bi­liza esses dados, é papel do jor­na­lismo verificá-los. Se o não faz, é dever do jor­na­lismo investigá-los. Se uma aná­lise glo­bal é inviá­vel, o inqué­rito deve dar pri­o­ri­dade aos que são indi­ca­dos para car­gos de maior rele­vân­cia na admi­nis­tra­ção pública. Em qual­quer caso, inves­ti­gar uma polí­tica de nome­a­ções não é con­tar nomes no Diá­rio da Repú­blica.

Por outro lado, uma ini­ci­a­tiva edi­to­rial como esta não deve limitar-se a debi­tar valo­res quan­ti­ta­ti­vos. Se a ambi­ção é escla­re­cer bem os lei­to­res, importa dis­cri­mi­nar qua­li­ta­ti­va­mente a infor­ma­ção, o que no tra­ba­lho publi­cado é feito sem a ênfase ou o cui­dado apro­pri­a­dos, e em alguns aspec­tos é igno­rado. Alguns exem­plos: importa dis­tin­guir entre novas nome­a­ções e recon­du­ções (os núme­ros exi­bi­dos na capa do PÚBLICO não o fazem), entre a com­po­si­ção de gabi­ne­tes minis­te­ri­ais e os car­gos diri­gen­tes da admi­nis­tra­ção (é nes­tes que deve concentrar-se a aten­ção a cri­té­rios de ‘con­fi­ança polí­tica’ que pos­sam fomen­tar o cli­en­te­lismo e abrir por­tas à medi­o­cri­dade), e ainda entre as posi­ções de maior res­pon­sa­bi­li­dade e as res­tan­tes (a rele­vân­cia pública da esco­lha de um director-geral não é a mesma da de um moto­rista, embora ambas inte­grem a lista glo­bal de nomeações).

Outro aspecto cri­ti­cá­vel na edi­ção do dia 16 é o facto de a info­gra­fia publi­cada na capa ter o título ‘Nome­a­ções fei­tas nos pri­mei­ros meses de acti­vi­dade pelos últi­mos cinco gover­nos’, ocul­tando o que se des­co­bre nas pági­nas seguin­tes: que esses ‘pri­mei­ros meses’ sig­ni­fi­cam perío­dos de tempo muito dife­ren­tes entre si. A falta de rigor era agra­vada no edi­to­rial, que assu­mia como boas as con­clu­sões reti­ra­das de com­pa­ra­ções ile­gí­ti­mas, e recor­ria ao con­ceito ainda mais vago de nome­a­ções fei­tas pelos gover­nos ‘num pri­meiro tempo’.

A nota que na edi­ção seguinte, no inte­rior do jor­nal, reco­nhe­cia e cor­ri­gia o erro da man­chete da vés­pera deve ser sau­dada como um gesto indis­pen­sá­vel ao res­ta­be­le­ci­mento da con­fi­ança dos lei­to­res que acu­sa­ram o PÚBLICO de ‘mani­pu­la­ção’ e ‘má-fé’. Revelar-se-á cre­dí­vel se forem toma­das as medi­das neces­sá­rias para que não se jus­ti­fi­quem no futuro recla­ma­ções seme­lhan­tes às desta ‘segunda-feira negra’. Na mesma página, porém, uma nova notí­cia dei­xava por escla­re­cer as dis­cre­pân­cias, rea­fir­ma­das, entre dados divul­ga­dos por gover­nan­tes e núme­ros ‘apu­ra­dos pelo PÚBLICO’, e dava a conhe­cer que no por­tal do governo na Inter­net fora actu­a­li­zada a con­ta­bi­li­za­ção das nome­a­ções já efec­tu­a­das (1682, das quais 962 recon­du­ções). Essa infor­ma­ção, aliás, estava dis­po­ní­vel desde domingo (mas ‘já fora do nosso horá­rio de fecho’, garante o jor­na­lista João d’Espiney, autor da peça prin­ci­pal da edi­ção de 16 de Janeiro).

Con­si­dero tam­bém cri­ti­cá­vel que na pri­meira página da edi­ção de terça-feira não tenha sido feita qual­quer refe­rên­cia ao facto de a man­chete da vés­pera não ser ver­da­deira. Mereciam-no os lei­to­res fiéis e todos os que no dia ante­rior tenham olhado, nas ban­cas, para a capa do PÚBLICO. A agra­var essa lacuna, sur­gia, com des­ta­que, uma cha­mada inti­tu­lada ‘Nome­a­ções / Caiu o ‘tro­vão da des­con­fi­ança’ e aca­bou o estado de graça do Governo’, que reme­tia para tex­tos de opi­nião sobre as recen­tes e con­tes­ta­das esco­lhas para car­gos de topo nas empre­sas EDP e Águas de Por­tu­gal e os seus efei­tos para a ima­gem do governo de Pas­sos Coe­lho. Na capa, porém, falava-se ape­nas, gene­ri­ca­mente, em ‘nome­a­ções’, num exer­cí­cio de ambi­gui­dade que suge­ria ao lei­tor incauto que a ‘des­con­fi­ança’ e o fim do ‘estado de graça’ do governo viriam na sequên­cia da man­chete de segunda-feira.

O jor­nal deve agora repa­rar o erro come­tido e infor­mar os lei­to­res sobre o que real­mente se passa em maté­ria de nome­a­ções gover­na­men­tais. Bár­bara Reis asse­gura que ‘esse tra­ba­lho está em curso e con­sis­tirá na com­pa­ra­ção das nome­a­ções fei­tas pelo actual governo num período de sete meses — o refe­rente usado neste tra­ba­lho para o exe­cu­tivo Pas­sos Coe­lho — com um período idên­tico para os res­tan­tes gover­nos’. Permito-me suge­rir que o esforço não se limite à lei­tura ano­tada do Diá­rio da Repú­blica.

Entre as cau­sas deste desas­tre jor­na­lís­tico, a direc­tora refere ‘a esco­lha de um cri­té­rio errado pelo jor­na­lista’ e ‘o acom­pa­nha­mento ina­de­quado do tra­ba­lho’ pela direc­ção. E con­clui que ‘fal­tou san­gue frio para, quando o tra­ba­lho foi entre­gue ao fim do dia de domingo, can­ce­lar a sua publi­ca­ção, esco­lher outro tema para aque­las pági­nas e repa­gi­nar todo o jornal’.

Por mim, quanto às lições a tirar deste caso, julgo que a ênfase deve ser colo­cada na revi­são dos meca­nis­mos de escru­tí­nio interno do pro­cesso de pro­du­ção das notí­cias. Um jor­nal como o PÚBLICO não pode dis­pen­sar meios de con­trolo edi­to­rial hie­rár­quico que garan­tam a qua­li­dade e o rigor da infor­ma­ção que publica. A cre­di­bi­li­dade e o res­peito pelos lei­to­res são incom­pa­tí­veis com a levi­an­dade ou o des­leixo no enqua­dra­mento do tra­ba­lho redac­to­rial. Vale a pena reflec­tir, mesmo se as con­si­de­rar­mos exces­si­vas, nas pala­vras de Manuel Vaz, um dos lei­to­res que pro­tes­ta­ram con­tra a man­chete do dia 16. Dizendo recear que o jor­nal queira ‘distinguir-se por títu­los pom­po­sos, mas total­mente ina­de­qua­dos a quem tenha dois dedos de testa’, avisa: ‘Não é bom cami­nho; ou então é, mas enganam-se no alvo’.’”