Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O show tem que continuar

Há alguns meses, mais precisamente em outubro de 2011, a TV Correio da Paraíba exibiu imagens de uma menina de 13 anos sendo estuprada. O Ministério Público se pronunciou, na época, afirmando que iria cassar a licença, mas o diretor da emissora afirmava, por sua vez, que estava dentro de seu direito, baseado na tese da “liberdade de expressão”. Passaram os meses e, até onde se sabe, a TV continua no ar.

A mensagem que o caso passa é a de que mostrar cenas de uma menor sendo estuprada, na TV aberta, em horário nobre, pode. É permitido. Não passa de “liberdade de expressão”. Não há nenhum tipo de limitação à liberdade de expressão, nem quando esta suposta liberdade atente contra os direitos da própria vítima. Na época, muitas pessoas chegaram a se perguntar se o limite seria a TV passar filmes snuff, aquele tipo de filme em que pessoas são realmente torturadas e mortas e tais cenas são capturadas pelas câmeras. Alguns até brincaram, dizendo que só valeriam os snuff sem querer, quando a câmera pegasse a cena por acidente; mas outros temiam que pessoas fossem mortas para isto.

Claro, tudo conjecturas e discussões que, até certo ponto, brincavam com o absurdo da situação. Brincavam, é verdade, mas não sem um pouco de temor frente à suposta liberdade absoluta que redes de TV têm de fazer praticamente tudo que lhes convém. Passar por cima da dignidade humana, esconder aquilo que não interessa mostrar, defender políticos amigos e apenas atacar os inimigos… Isto virou a mídia no Brasil, que também tem no placar o apoio à ditadura, para completar e resumir a ópera.

Estupro no Big Brother

Recentemente outro caso de estupro mostrado na TV causou revolta, desta vez nacional, ampla. Envolveu nada mais nada menos que um dos carro-chefes da Rede Globo, o Big Brother Brasil, programa que desperta amores e ódios e é, sem dúvida, um dos piores programas jamais exibidos pela TV brasileira, com ampla e irrestrita exploração do que há de pior em termos de degradação humana, abusos, exageros e fabricação de personagens artificiais desesperados por cinco minutos de fama.

Poucos dos que já passaram por aquela “casa” podem, hoje, afirmar terem se livrado do estigma trazido pelo programa e continuarem brilhando, com fama própria e por suas conquistas efetivas, caso de Grazi Massafera, que tem hoje uma bem-sucedida carreira de atriz e Jean Wyllys, votado o melhor deputado federal pelo Congresso em Foco e maior defensor da causa LGBT no Congresso. Pode-se ainda citar Sabrina Sato que, apesar de ter virado uma caricatura de si mesma, ainda se mantém sob os holofotes. Os demais acabaram no ostracismo.

Na madrugada do dia 15 um dos brothers, Daniel, teria abusado sexualmente de uma sister, Monique, que, insensível devido ao excesso de álcool, não teria reagido e muito menos consentido qualquer avanço sexual por parte do rapaz. Segundo o Código Penal, um caso que pode facilmente ser interpretado como estupro, para alguns juristas, até mesmo estupro de vulnerável, dado o grau de insensibilidade da moça.

Um caso de polícia

Nas redes sociais, a revolta tomou conta do Twitter e Facebook e logo a notícia acabou virando manchete nos principais portais até finalmente, ter despertado a cúpula da Globo, que desmentiu aquilo que foi visto por milhões e espalhado pelo YouTube – enquanto tentava, ao mesmo tempo, apagar todos os rastros, forçando a deleção dos vídeos baseada nos direitos da rede sobre o programa – e a atenção das autoridades, inclusive com pronunciamento da ministra Iriny Lopes e visita de policiais civis ao Projac.

Diferentemente do caso da Paraíba, onde o vídeo do estupro foi mostrado em um programa sensacionalista com a intenção de conseguir um melhor Ibope, a cena no Big Brother foi vista ao vivo por milhões de pessoas no pay per view, depois espalhada pelas redes sociais e editada pela Globo em sua versão para a TV aberta de forma a parecer que houve uma relação, ou ao menos uma “bolinação” consensual e, então, abafar o caso.

Não obtiveram sucesso, e a história promete tornar-se um caso de polícia com desdobramentos múltiplos.

“Operação Abafa”

O diretor do programa, Boninho, chegou a dizer, via Twitter e entrevistas a portais, que não teria acontecido nada, até mesmo que o rapaz acusado de estupro, por ser negro, estaria sendo vítima de racismo. É interessante notar que tal acusação vem de poderoso diretor do canal cujos negros, em geral, são retratados como escravos e empregadas domésticas, com raros papéis de destaque e, apesar de maioria entre a população brasileira, são minoria discreta na teledramaturgia “global”. Se, para o diretor do programa, o “racismo” era a razão para toda a revolta – inclusive dentre parte do movimento negro – como explicar que o rapaz tenha sido logo depois expulso do programa sob a alegação de que teria ido contra as regras do programa?

Da mesma forma, como entender uma edição feita para tentar desmentir as acusações sobre estupro em um programa quando, no seguinte, vemos um desconfortável Pedro Bial anunciando, sem qualquer esclarecimento, a expulsão do rapaz? Falta de transparência é, no mínimo, uma acusação válida a ser feita contra a Rede Globo. Estamos falando da casa mais vigiada do país, como deixam bem claro as propagandas inúmeras do programa na grade da TV Globo. Logo, sendo a mais vigiada, os profissionais de plantão deveriam ter a capacidade de intervir em casos como o alegado estupro de uma participante. Ao contrário, editaram e narraram como uma história de amor, o que mascara um profundo machismo na sociedade, onde a mulher, mesmo estuprada, deve dar graças pelo homem ter algum interesse nela.

Para quem assistiu às imagens sem cortes, restou a revolta, mesmo com a expulsão de Daniel; para quem não teve a oportunidade e assistiu apenas a versão editada, restou a incompreensão.

Silêncio e estupidificação

O que muitos ativistas e mesmo pessoas apenas revoltadas esperam é que, ao menos, haja uma discussão sobre a concessão pública de redes de televisão, feitas na total ilegalidade, sem qualquer consulta ao público interessado e de forma a distribuir sinais ao máximo número de aliados de políticos poderosos. Urge uma profunda discussão sobre a forma como são renovadas as concessões de TV e espera-se um pronunciamento – na verdade, uma ação enérgica – por parte do ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, que até o momento sequer parece ter tomado ciência do caso ou, se ao menos ouviu falar, acha que não tem relação com sua pasta.

Os dois casos acima, de estupro cometido dentro de um programa de TV e editado para fazer parecer apenas algo consensual – ou “lindo amor”, como chegou a afirmar o apresentador do programa, Pedro Bial – e de estupro usado por programa de TV para lucrar e conseguir melhor share no horário, ilustram o uso que empresas privadas, políticos e famílias que alguns não teriam problema em chamar de mafiosas, fazem das concessões públicas de rádio e TV. São feudos privados, para uso da melhor forma que seus donos encontrem – e por melhor, queremos dizer “sensacionalista”.

Tudo vale por ibope, mesmo a completa degradação do ser humano. Sempre sob o manto da liberdade de expressão que há tantos anos garante apenas a liberdade para um pequeno grupo e o silêncio ou a “midiotização” da maioria que, no entanto, vem encontrando nas redes sociais uma forma de quebrar a barreira – do silêncio e da estupidificação.

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[Raphael Tsavkko Garcia é jornalista, blogueiro e mestrando em Comunicação]