No mar de pessimismo que se tornou o encontro anual do Fórum Econômico de Davos, com a crise europeia impregnando o ambiente, um homem esbanjava otimismo, e não somente porque na sua casa come-se muito hambúrguer e não há problema de dinheiro. Bill Gates – dono da segunda maior fortuna do planeta, estimada em US$ 57 bilhões – explica ao Globo porque entrou numa cruzada contra a pobreza. Aos 56 anos, o criador da Microsoft diz que se encontrou na filantropia, dedicando seu tempo integral à Fundação Bill e Melinda (sua mulher) Gates. Crise, fracasso do capitalismo? Não. Gates prefere a perspectiva histórica: "O mundo está muito melhor hoje", diz.
O senhor está há 11 anos fazendo filantropia. O que essa experiência lhe ensinou sobre ser pobre: o senhor, segundo homem mais rico do mundo, consegue hoje se colocar no lugar de um homem miserável?
Bill Gates – Não. Não acho que seja possível entender o quão difícil é quando você acorda todo dia e pode não ter bastante comida para a família; e sua criança morre de malária, seus medicamentos contra o HIV não estão disponíveis; e você tem que encarar a morte por causa disso. Não acho que alguém possa imaginar o quão duro é isso. Sei que se quer eliminar isso. Eu tenho sido tão sortudo que não posso imaginar. Tenho trabalhado em tempo integral para a minha fundação (Fundação Gates) nos últimos três anos. Quando criamos a fundação, há 11 anos, trabalhava em tempo parcial. Agora, a fundação é o meu foco total.
O que o fez decidir se dedicar totalmente à caridade?
B.G. – Eu planejei com bastante antecedência. Foram quatro anos para fazer a transição. Falei com o comando da Microsoft, e falei publicamente anos antes de acontecer. E foi (uma decisão) simplesmente baseada no fato de que vi tanta necessidade de organizar e incentivar o trabalho em prol dos mais pobres, melhorando sua saúde, nutrição. Vi que a ciência não estava trabalhando em prol deles. Até (o combate à) malária não estava conseguindo quase nenhum dinheiro. As plantações agrícolas para os mais pobres não estavam conseguindo inovação. E aí vi que o tipo de habilidades que eu desenvolvi na Microsoft e os recursos que eu fui sortudo de ter se encaixavam… E assim isso virou minha segunda carreira.
Por que outros bilionários não têm essa visão?
B.G. – Eu encorajo outras pessoas a fazerem o mesmo. Acho que estão perdendo uma grande oportunidade de se sentirem realizados, de causar um impacto positivo e mostrar seus valores. Acho que houve um aumento (de filantropos). Tem gente fazendo coisas ótimas.
Mas não o suficiente…
B.G. – Eu queria que fosse mais. Estamos dependendo de governos para muitas dessas coisas. Mas filantropia tem um papel especial no incentivo à inovação. Se tivéssemos mais filantropos, a área (tecnológica) estaria avançando. É difícil entender, porque, se você tem dinheiro, não tem muita opção. Pode gastar com você mesmo… Mas quantos hambúrgueres ou carros você pode comprar? Você pode gastar com os seus filhos. Mas o histórico mostra que faz muito mal para crianças serem criadas com muito dinheiro. E não acho que seja bom para a sociedade. Você pode tentar devolver o dinheiro para a sociedade que criou as condições e deixou você se dar tão bem.
Então é verdade que o senhor dará uma parte minúscula de sua fortuna a seus três filhos?
B.G. – É. Não acho que seja bom para crianças começarem a vida com uma fortuna, porque, assim, não vão achar seu próprio caminho, escolher uma profissão, criar algo que é deles e dar o exemplo para seus filhos.
Um homem como o senhor, no Brasil, teria muitos seguranças, se locomoveria em jatos. Mas li que o senhor foi para o concerto do grupo U2 dirigindo uma minivan cheia de crianças. O Bill Gates é tão simples assim?
B.G. – Bom, eu ando de jatos para minhas viagens para a Índia, África etc. Não sou um ascético! Às vezes, eu como dois hambúrgueres! (risos) E como o melhor hambúrguer. Então, não estou tentando me segurar ou negar quem eu sou. As coisas que eu quero, como um bom DVD, um livro, eu compro. Eu jogo tênis, vou para lugares quentes. Estou sempre muito impressionado com pessoas que têm muito pouco dinheiro e dão. Porque para eles isso é abrir mão de umas boas férias, um filme ou algo que faria diferença para eles. O dinheiro que eu estou dando não é um sacrifício, nada como: vou ter o bastante para comer?
Sua fundação também destina bastante dinheiro à educação.
B.G. – Cerca de 75% do que fazemos é para ajudar os mais pobres no mundo, em áreas como saúde, agricultura, água e saneamento. E 25% vão para ajudar os Estados Unidos a melhorarem o sistema de educação. Algumas das lições desse trabalho, sobre como avaliar um professor ou usar tecnologia, podem ser aplicadas em outros países. Mas estamos experimentando primeiro nos Estados Unidos, porque penso que parte da minha fortuna tem que ir para o país que me deu a educação e criou o ambiente empresarial que me permitiu o sucesso.
Como o senhor vê um país como o Brasil, que emergiu este ano como a sexta maior economia do mundo, mas tem um baixo padrão na área de educação? O país precisa investir mais nessa área?
B.G. – O Brasil precisa investir em muitas coisas. Sua economia está crescendo, tem um ótimo setor agrícola, minério de ferro, empresas como Embraer, que está fazendo trabalho de primeira no mundo, e reservas de petróleo. Há muito mais que pode ser feito, não necessariamente em termos de dinheiro, mas como administrar professores e se assegurar que estejam motivados. Sei que maioria dos países não está fazendo isso bem.
Aqui em Davos, pela primeira vez estão discutindo o fracasso do capitalismo. O senhor compartilha esse clima pessimista?
B.G. – O mundo está muito melhor hoje. Isso é fato verificável. Menos crianças morrem por ano. Que medida métrica melhor do que quantas crianças morrem aos 5 anos? Eram 30%, e agora são 6%. Temos um plano, com ajuda de inovação, de reduzir para menos de 3%! O mundo está ficando mais igualitário porque os países de renda média estão ficando ricos mais rapidamente do que os países ricos ficaram. A ascensão da China, Brasil! Não quero dizer que esses países não vão cometer erros. Temos de focar agora nos países mais pobres. China e Brasil não são mais receptores de ajuda como no passado. E agora, cada vez mais, podem começar a doar.
O Brasil deve ajudar mais a África?
B.G. – É o meu ponto de vista. Passo boa parte do meu tempo pensando em como se pode a ajudar a África. Vocês têm a Embrapa, que fez ótimo trabalho e entende de solos tropicais, têm especialistas de saúde. O Brasil está numa posição especial, tendo reduzido muito a pobreza. Então, o mundo espera que o Brasil comece a se envolver mais com estas coisas.
O senhor pode algum dia reconsiderar uma volta ao tempo integral na Microsoft?
B.G. – Meu trabalho envolve o uso da tecnologia, com novas vacinas, novas sementes (para agricultura) . É um trabalho muito criativo. Eu também estou envolvido em tempo parcial com a Microsoft, no Conselho de Administração. Mas não, estou agora na minha segunda carreira, estou profundamente nela e acho que é importante que eu garanta que estes recursos (da fundação) sejam bem usados.
Para onde o senhor acha que estamos indo tecnologicamente? Qual é o futuro da Microsoft?
B.G. – Certamente, a forma como interagimos está aumentando. A Microsoft tem produtos como o Kinect (sensor do console Xbox), que é baseado em reconhecimento visual. Cada vez mais estamos avançando no campo de reconhecimento da fala. Basicamente, cada parede se tornará uma tela de alta resolução e o ambiente vai ser rico, com pessoas com habilidade de falar, fazer gestos, usar um lápis para ter sua escrita manual reconhecida. As principais empresas de software estão focadas nisso, o que chamamos de Natural User Interface, e a Microsoft é líder em vários elementos.
Seus filhos nunca lhe pediram um iPad ou um iPod?
B.G. – Não. Eles usam ótimos equipamentos do Windows e estão bem. Não têm nenhuma privação.
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[Deborah Berlinck, de O Globo, em Davos, Suíça]