ASSETJ
O atual corregedor-geral da Justiça de São Paulo, desembargador José Renato Nalini, escreveu, neste final de semana, um artigo no jornal O Estado de S. Paulo intitulado “A quem interessa?”, onde expressa sua opinião sobre todo o debate acerca do Judiciário que vem sendo travado há um mês, especialmente na guerra de poderes que envolve o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e todos os desdobramentos que ganham páginas e mais páginas nos jornais. Com as vênias de praxe, peço permissão a Vossa Excelência para discordar do teor do artigo, que passo a analisar a seguir.
O corregedor avalia que os magistrados que se “autopagaram” verbas milionárias, ainda que devidas, pensaram “com o egoísmo característico desta era” naquela filosofia que o povão conhece como “farinha pouca, meu pirão primeiro”. Mesmo contando com a crítica do corregedor sobre tal atitude perniciosa parece-me que ele trata o assunto de forma normalíssima, quase como um pecadilho, tendo em vista que as verbas eram devidas e que “não houve desfalque, maracutaia, falcatrua, embolso, corrupção”. Nas entrelinhas parece que o corregedor acredita que foi uma atitude errada, mas que está dentro dos padrões usados pela dita sociedade moderna.
Gostaria de saber se a Corregedoria trataria o assunto com tal parcimônia caso algum trabalhador do Judiciário tivesse acesso às contas e pagasse aquilo que lhe é devido, da mesma forma que tais magistrados agiram…
Três anos sem reposição
Salvo melhor juízo, houve, sim, um crime que está bem delineado na esfera penal, quando vem à tona que ex-presidentes e membros da Comissão de Orçamento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo pagaram, a si mesmos, elevadas quantias, ainda que, repito, devidas. Vejamos o que diz o Código Penal Brasileiro sobre o assunto: O Artigo 319 do CPB explica o que é prevaricação. Trata-se de um crime funcional, ou seja, praticado por funcionário público contra a Administração Pública. A prevaricação consiste em retardar ou deixar de praticar devidamente ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal (g.n.).
Ora… Se há uma verba vinda do Tesouro estadual que é para ser repartida entre a maior quantidade possível de servidores do Judiciário – afinal de contas estamos na Casa da Justiça, e juízes e desembargadores também são servidores públicos –, quando alguém tem informação privilegiada e, além disso, é detentora da caneta e faz o que fez, incorre num crime. Está embolsando, sim, está desfalcando, sim, verbas que ainda que lhe sejam devidas deveriam “aguardar melhor oportunidade” de pagamento, como é o despacho comum no TJ paulista, independente dos motivos que deram ensejo aos pagamentos efetuados. Ou seja: pouco importa se o apartamento inundou, ou se há um tratamento de saúde ou se era para pagar dívidas.
Trata-se ainda de mandatários máximos da Justiça, a quem se imaginava que deveriam nortear sua conduta pelos princípios éticos, morais e isonômicos. Não me parece que tenham agido com tais princípios.
Tenho, por exemplo, quase 60 mil servidores do Judiciário paulista (entre ativos, aposentados e pensionistas) nas mesmíssimas condições – casos de câncer, filhos portadores de necessidades especiais, pais na fila de transplante e que pedem aquilo que também lhes é devido, em montantes muito inferiores aos que aparecem agora na mídia – e quando o Tribunal responde, o que é raro, lhes dá algumas quimeras. Só para que a sociedade tenha noção, nossos aposentados por invalidez e outros que são abrangidos pela Lei Complementar nº 1010/2007, que criou a São Paulo Previdência, ficaram mais de três anos sem nenhuma reposição e ainda há um passivo a ser recebido sem perspectiva de que as dívidas sejam pagas. Os pensionistas, nem isso. Muitos amargam, sob o escopo e o respaldo da burocratização e da falta de funcionários na SPPrev, a atualização monetária que também não chega.
Estamos no Brasil
Voltando à esfera criminal, o Artigo 312 do CPB é ainda mais claro, quando fala sobre peculato. Trata-se de um crime de apropriação por parte do funcionário público, de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou privado, de que tenha a posse em razão do cargo, ou desviá-lo em proveito próprio ou alheio. Além de, não tendo a posse, mas valendo-se da facilidade que lhe proporciona o cargo, subtrai-o ou concorre para que seja subtraído para si ou para alheio (g.n.).
Acho que nem precisa explicar. Apenas ressalvo que o dinheiro que estava lá era deles. Mas era também dos outros.
Sendo assim, os magistrados que se aproveitaram de informações privilegiadas cometeram, sim, um crime contra a Administração Pública. Há penas de detenção e reclusão para ambos os casos, além de multa. E aí, a pergunta que não quer calar: eles serão punidos? Óbvio que não. Fosse o Brasil um país sério, eles seriam detidos, obrigados a devolver o dinheiro de cuja versação fizeram mal uso. Se fosse num país asiático, então, é bem provável que se suicidariam, diante de tamanha vergonha. Mas relaxem… estamos no Brasil.
Continuando seu artigo, José Renato Nalini faz críticas à mídia sobre a qual acredita querer nivelar os níveis de corrupção praticados pelo Executivo, Legislativo e, agora, o Judiciário. “Não é algo elogiável, porém os seus efeitos se circunscrevem a um universo restrito. Não se roubou a Nação”, informa o corregedor.
Sangramento em praça pública
Aqui se trata do modus operandi e agradeço aos céus que os envolvidos não estão em nenhum cargo público porque, certamente, agiriam da mesma forma. O que se deve punir é o ato em si. O fato de terem sacaneado os próprios colegas e nossos milhares de servidores faz destes senhores pessoas ainda mais perigosas. Nem corporativos são. São “traíras”, como o povão diz por aí.
O corregedor, mais à frente, acredita que “o perigo é que o tom das reportagens leve a população a acreditar que não há diferença entre quem lesa o Tesouro e quem 'atropela' os colegas para reduzir seus créditos perante o devedor”. Lamento informá-lo de que não há diferença. Repito que o foco deve ser o ato, e não o universo a que está circunscrito. Sob o ponto de vista penal, quem lesa em 100 mil ou em 100 milhões, quer seja na iniciativa privada ou pública, merece o mesmo tratamento.
Além do mais, há uma série agravante em todo este imbróglio e que José Renato Nalini não cita. Estes magistrados não agiram apenas em benefício próprio e “apenas” lesaram colegas da magistratura ou os servidores. Os nomes que aparecem referem-se a mandatários do Poder Judiciário paulista entre 2008 e o início de 2011. Trata-se de um período em que nem mesmo a reposição salarial dos servidores foi paga e que culminou com o mais duro e longo período de paralisação do TJ paulista, quando chegamos a 127 dias de greve. Enquanto se negava aos servidores a mera reposição da inflação, num flagrante descumprimento ao mandamento constitucional (Art. 37, X, CF), locupletavam-se esses senhores exaurindo os parcos recursos do Judiciário. Prejudicavam, assim, seus colegas, os servidores e toda a sociedade.
O corregedor, por fim, também acredita que estejam desviando o foco do “mensalão” e usando o Judiciário como escudo. É bem provável que isso ocorra de fato. A imprensa, há muito, quer ver sangue jorrando sob as togas e existe a efetiva possibilidade de que outros interesses, escusos ou não, façam parte deste policiamento do Judiciário. Entretanto, este processo de transparência parece finalmente chegar ao Poder Judiciário.
Este sangramento em praça pública, apesar dos pesares, é um mal necessário e rogamos que ao final de tudo tenhamos um Judiciário transparente, limpo, oxigenado. É preciso lembrar que o câncer, após extirpado, deve passar por sessões quimioterápicas até a definitiva cura. Do contrário, as metástases voltam e muitas vezes com mais força.
Este texto foi escrito na condição de diretor de Comunicação da Associação dos Servidores do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Assetj).
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[Sylvio Micelli é jornalista e servidor público]