Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Profissão: repórter

Apesar de estar longe das redações de jornal há mais de uma década, continuo essencialmente um repórter. Mesmo depois de seis livros publicados e duas estatuetinhas do Jabuti enfeitando a estante da sala, ainda tenho certo pudor de me identificar como “escritor”. Na portaria dos hotéis, à hora de preencher a ficha de identificação, sempre informo, sem titubear, no quadrinho relativo à profissão: “jornalista”.

Escrevo, na verdade, livros-reportagens. Faço mais jornalismo hoje do que quando trabalhava em jornal. Uma vez liberto dos dois maiores fatores de pressão que incidem sobre o texto de imprensa – espaço em linhas cada vez mais curto e o tempo de apuração cada vez mais exíguo –, pude, enfim, me dedicar a investigações de longo fôlego, que me consomem anos de trabalho e exigem algumas centenas de páginas ao serem transpostas para o papel.

Porém, meus métodos, objetivos e ferramentas são os mesmos de todo repórter que se preza. Trata-se de construir e cultivar fontes confiáveis, pôr em dúvida toda e qualquer informação (não existe informação desinteressada, nunca é demais lembrar), entrevistar pessoas, desvendar segredos e tentar estabelecer conexões entre episódios aparentemente estanques. E, acima de tudo, descobrir e contar boas histórias. Em vez de escrever para meu deleite próprio ou por alguma espécie de necessidade artística, escrevo pensando na recepção, na necessária interlocução com o leitor.

Fontes primárias

Penso nisso agora mesmo, quando me preparo para ter o primeiro dos três volumes da biografia de Getúlio Vargas publicado pela Companhia das Letras. No caso da trilogia “Getúlio”, a exemplo dos meus livros anteriores, faço apenas o bom e velho jornalismo. E digo isso sem a mínima tentação de querer justapor ao substantivo “jornalismo” algum adjetivo mais pomposo – como “literário” – com o intuito de supostamente enobrecê-lo ou distingui-lo. A Companhia das Letras, aliás, tem uma belíssima coleção intitulada justamente “Jornalismo Literário”, onde podemos ler alguns textos de mestres e clássicos imbatíveis do gênero.

Prefiro definir meu trabalho simplesmente como jornalismo. Ponto. Substantivamente. Sem adjetivações. Tive isso em mente ao abraçar a longa pesquisa que tem me levado a mergulhar na vida de Getúlio e nos meandros históricos da chamada Era Vargas. É óbvio que tive de conhecer e rever a caudalosa bibliografia disponível sobre o personagem, ler e reler teses e dissertações acadêmicas, além de relatos memorialísticos, muitos livros de época, alguns hoje raros e esquecidos. Contudo, minha matéria-prima, por excelência, é composta por fontes primárias: cartas, telegramas, diários, jornais do período, fotografias, despachos diplomáticos, inquéritos policiais e judiciais. É isso que fornece o esqueleto e a musculatura de uma boa biografia.

Meu ofício é a dúvida

É preciso uma paciência beneditina para vasculhar arquivos, sujar as mãos de pó, decifrar caligrafias garranchudas, passar semanas, meses, até mesmo anos inteiros na caça obsessiva de documentos que ajudem a preencher lacunas, confirmar hipóteses, suscitar novas interrogações.

É isso que busco. Sou movido pela curiosidade. Não corro atrás de verdades absolutas, de certezas peremptórias. Mesmo porque não acredito nelas. Minha profissão é indagar. Meu ofício é a dúvida. Sou repórter.

[O 1º volume da biografia de Getúlio Vargas tem lançamento previsto para 19 de maio. Para saber mais sobre a trilogia, acesse o hotsite: http://biografiagetuliovargas.com/]

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[Lira Neto nasceu em Fortaleza em 1963. Jornalista e escritor, ganhou em 2007 o prêmio Jabuti de melhor biografia, por O inimigo do rei: Uma biografia de José de Alencar (Globo, 2006). Dele, a Companhia das Letras publicou, em 2009, Padre Cícero – Poder, fé e guerra no sertão, premiado com o Jabuti de segunda melhor biografia daquele ano. É autor também de Maysa: Só uma multidão de amores (Globo, 2007) e Castello: A marcha para a ditadura (Contexto, 2004)]