As relações promíscuas, suspeitas e eventualmente criminosas entre Carlinhos Cachoeira e jornalistas da Veja estão sendo exaustivamente discutidas neste Observatório (ver aqui, aqui e aqui, entre outros artigos). Por razões óbvias, podemos concluir que a mídia foi tragada para dentro do campo político (e judicial também). Mas isto não chega a ser novidade. Isto também ocorreu no caso do jornalista que escreveu o livro A Privataria Tucana, como já ressaltei neste OI. Destaco daquela resenha algo que agora me chama a atenção por outra razão:
“Tragado para o centro da disputa presidencial, o autor diz ter sido transformado numa espécie de agente secreto e confessa que durante alguns momentos foi dominado por uma paranoia digna da Guerra Fria. O despachante virou informante jornalístico, testemunha policial e réu. O ex-policial espião sondado por petistas para prevenir os vazamentos no bureau de campanha de Dilma acabou não sendo contratado, mas, segundo o autor, fez jogo duplo em benefício da campanha de Serra ao plantar as sementes da discussão em torno da violação dos sigilos fiscais de tucanos – e também virou réu.”
Foi essa confusão de papéis que mais me chamou atenção. Tragados pela voragem eleitoral, todos os personagens foram transportados para o campo político e se viram obrigados a jogar o jogo segundo as regras deste campo (onde o discurso é ação e o objetivo é a vitória, e não o respeito à lei). Mas, ao contrário do que possa parecer, a sociedade, que tem o direito de exigir dos policiais federais que ajam sempre e estritamente dentro da lei, também pode e deve cobrar dos jornalistas contratados pelos partidos políticos um certo distanciamento da disputa em que atuam como assessores, e não como candidatos.
Liberdade de imprensa não é ilimitada
Os jornalistas que receberam informações vazadas do birô de campanha da então candidata Dilma Rousseff deveriam refletir se era conveniente ou não transformá-las em notícia, pois os vazamentos plantados em época eleitoral produzem uma indesejada confusão entre o campo jornalístico e o campo político. É justamente essa confusão que dá todo direito aos políticos e militantes de um partido de acusar a mídia de partidarização em benefício do outro candidato na disputa. A imprensa cumpre um papel relevante ao descrever e amplificar as disputas do campo político, mas sangra muito quando atua de maneira partidária ou é acusada, com justiça, de ter agido com partidarismo (a menos que assuma escancaradamente seu partidarismo, coisa que nem todos os veículos de comunicação fizeram; ver aqui).
O jornalista da Veja que recebeu por tanto tempo informações do investigado certamente vai alegar que agiu segundo os ditames da ética profissional. Mas a confusão de papéis neste caso ocorreu e é parecida com aquela protagonizada pelo jornalista Amaury Ribeiro Jr. Querendo ou não, ambos praticaram um jornalismo investigativo que os transformou em investigados. Ao poder Judiciário caberá decidir agora se o editor da Veja favoreceu de alguma maneira Carlinhos Cachoeira e seus negócios criminosos a ponto de poder ser considerado criminoso. Fazer a apologia do autor de um crime ou se associar a criminosos são dois crimes graves e os jornalistas que lidam com suspeitos ou criminosos contumazes por dever profissional têm que tomar um especial cuidado para não serem incursos nestes dois tipos penais.
Jornalismo é uma coisa, prática criminosa é outra. Mas a confusão de papéis por parte do jornalista pode sugerir que ele cometeu infrações, ou no mínimo obrigá-lo a responder a processos penais. Nestes casos não adianta invocar a liberdade de imprensa ou dizer que o Judiciário tem que respeitá-la, pois o Judiciário também tem o poder dever de perseguir e condenar criminosos independentemente de sua profissão. Ninguém está acima da Lei e a liberdade de imprensa não é ilimitada, como parece ter pensado o jornalista da Veja que manteve relação profunda e duradoura com Cachoeira.
O precedente de Líbero Badaró
Jornalismo e política, política e Justiça, jornalismo e Justiça estão tão juntos misturados que o perigo de contaminação já não existe mais. O campo jornalístico já está totalmente contaminado pela política e o da política pelo jornalismo. O campo judicial agora terá que cuidar de ambos porque políticos travaram relações com criminosos que aparentemente foram favorecidos por jornalistas. Mas a missão do campo judicial é diferente daquela do campo político e do campo jornalístico. Juízes aplicam leis pré-existentes ao fatos que têm relevância jurídica. O Judiciário não faz, nem deve fazer, política. Se o fizer perderá a isenção necessária para julgar todos segundo os mesmos preceitos.
Os preceitos legais, por outro lado, não podem ser ignorados por políticos e jornalistas. Por mais que as atividades política e jornalística pareçam estar além dos limites do fenômeno jurídico (a política porque produz normas jurídicas; a jornalística porque investiga fatos potencialmente criminosos sem o poder de julgar e condenar criminosos), os políticos e os jornalistas também são cidadãos e como cidadãos podem ser julgados pelos seus atos caso violem normas legais em vigor. A falta de cuidado para o político pode resultar em morte eleitoral (como ocorreu com o senador Demóstenes Torres) e para o jornalista pode resultar em algo bem pior do que uma simples reprimenda pública ou profissional.
O fenômeno em discussão (a interpenetração nociva dos campos jornalístico, político e judicial), entretanto, não é novo. No Brasil, aliás, pode até ser considerado bastante antigo. O jornalista Líbero Badaró foi morto por razões políticas e, segundo se conta, a mando de Cândido Ladislau Japiaçu.
Japiaçu, chamado de “Caligulazinho” no jornal O Observador Constitucional, ocupava o cargo mais importante do Judiciário imperial na província de São Paulo. O executor de Badaró foi condenado, mas o réu notável acabou sendo absolvido por falta de provas. As suspeitas de ter sido ele o mandante do crime, entretanto, persistem como fato histórico porque Japiaçu era o principal alvo das denúncias de corrupção feitas no jornal editado pela vítima.
Lógica própria
Corrupção foi o pano de fundo para aquela tragédia. Também é elemento constitutivo essencial deste novo drama que envolve jornalistas, políticos, criminosos e, por necessidade funcional de julgar fatos juridicamente relevantes, os juízes. A CPI tentará estabelecer o papel de cada um na história. Sua própria instalação, entretanto, é prova cabal de que os campos jornalístico e político estão profundamente contaminados um pelo outro. Quer porque jornalistas e empresas de comunicação terão que ser investigados, quer porque os trabalhos da CPI fornecerão material jornalístico de sobra para os próximos meses.
O Judiciário estabelecerá as responsabilidades criminais de cada qual usando ou não os novos subsídios que surgirão na CPI. Por ora, é a própria CPI que se vale de provas colhidas no Inquérito Policial que foi conduzido pela PF e servirá de base para as denúncias do Ministério Público. O julgamento que os políticos e os jornalistas fazem ou farão dos fatos será, por razões óbvias, diferente daquele que será feito pelo Judiciário. Neste, como no caso denominado “mensalão”, o julgamento terá que ser técnico, pois ao julgar réus o Judiciário tem a missão de fazer cumprir a Lei, mas dentro dos estritos limites estabelecidos pela própria Lei.
A interpenetração dos campos político e jornalístico neste momento confere mais visibilidade e importância ao livro Corrupção e Sistema Político no Brasil, obra organizada por Leonardo Avritzer e Fernando Filgueiras. O livro, que ganhou destaque merecido na CartaCapital há bem pouco tempo (ver aqui), tem um capítulo dedicado especificamente a esta questão escrito pela jornalista Maria Cristina Fernandes. Diz a autora que:
“A imprensa é parte da disputa democrática pelo Estado, e a essa serve tanto em benefício da sua explicitação quanto no acobertamento de seus ditames. Há uma lógica jornalística que lhe é própria e nem sempre se encaixa nos pressupostos da teoria vigente. Domina a imprensa uma concepção ainda difusa de defesa da cidadania no âmbito da qual a corrupção aparece como fenômeno pouco preciso e descolado de interesses consolidados e duradouros. Esse descolamento impede não apenas o esclarecimento dos nexos de interesse que dão corpo e materialidade à corrupção, mas também obstrui seu combate efetivo pela sociedade e pelo Estado.”
Doa a quem doer
Veja fazia a apologia do moralismo defendido com eloquência por Demóstenes Torres na tribuna do Senado. Tanto o senador que posava de Catão quanto o jornalista da Veja, como ficamos sabendo em razão das conversas telefônicas grampeadas pela PF, eram frequentemente contatados por Carlinhos Cachoeira, cujos interesses duradouros no mínimo envolvem a obstrução do combate à corrupção que ele mesmo praticava. Os fatos, portanto, confirmaram as palavras da jornalista Maria Cristina Fernandes. Ao terminar seu capítulo para o livro Corrupção e Sistema Político no Brasil, a jornalista afirma:
“A relação entre imprensa, corrupção e política no Brasil é marcada por mal-entendidos sobrepostos. Enquanto a cultura jornalística resiste a acompanhar o movimento do mercado, a cobertura da corrupção é marcada por uma defesa difusa da cidadania e por uma relação simbiótica com as fontes. Nesse sentido, este artigo se dispôs apenas a apontar essa sequência de mal-entendidos advindos de um desconhecimento mútuo entre a imprensa e política institucional.
“A história do Brasil é pródiga em crises políticas potencializadas pela imprensa, que tanto precipitaram o golpe militar de 1964 quando sua falência duas décadas depois. A geração de jornalistas que se formou com a redemocratização foi cultivada no ideário romântico de que a imprensa existe para denunciar, quando, na verdade, a função primeira do jornalista é informar.
“Quem acusa são os fatos, quando bem noticiados, o que passa, necessariamente, por ouvir o outro lado…”
O padrão jornalístico Veja/Cachoeira também confirma a conclusão da autora. Mas dá um especial destaque à necessidade premente que temos agora de exigir que os fatos sobre o envolvimento da própria mídia com o criminoso sejam corretamente noticiados para que possam ser debatidos. Já sabemos que tipo de jornalismo a Veja praticava. Para definir que tipo jornalismo queremos que seja praticado pela própria Veja será preciso deixar que todos os fatos envolvendo Veja/Cachoeira sejam investigados, noticiados e debatidos. Doa a quem doer, como disse o relator nomeado para a CPI.
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[Fábio de Oliveira Ribeiro é advogado, Osasco, SP]