Os avanços alcançados nas tecnologias da informação abriram um leque extraordinário de ferramentas e oportunidades para que os cidadãos se agrupem em torno da defesa de ideias que causam impacto na sociedade em geral – o que é, para dizer o mínimo, legítimo. Ferramentas como o Facebook ou o Twitter não formam uma revolução espontânea – que me perdoem os românticos, mas é necessário que alguém inicie a “corrente” –, mas facilita o contato, o acesso, a disseminação de informações e ideias. Facilita, inclusive, o acesso a grupos constituídos, ONGs e à classe política. Com isso, a imprensa precisa ser vigilante para não se portar, acriticamente, como relações públicas de maiorias ou minorias em defesa de determinadas causas, por mais nobres que elas possam ser. É imperioso um distanciamento ideológico tanto para não se cair na tentação de editorializar uma reportagem, quanto para não endossar ilegalidades ou reportar legalidades.
Esse distanciamento é necessário porque o ser humano carrega consigo um conjunto de valores sociais, religiosos, políticos, éticos e familiares perfeitamente aceitáveis, próprios e inegociáveis. Não se defende aqui que o jornalista não tenha o seu conjunto de valores, pelo contrário, é valioso tê-lo. Defende-se, sim, que o jornalista não use esse conjunto para assumir posições que enviesem a informação levada ao público, reportando os fatos de acordo com a ideologia que defende.
É justamente por ser natural que um jornalista tenha os seus princípios que a tão proclamada imparcialidade jornalística seja uma utopia de poucos. Não há imparcialidade plena no jornalismo pura e simplesmente porque a própria formação pessoal do profissional o levará a enxergar um mesmo fato sob os mais diferentes ângulos. Ora, se dez jornalistas cobrirem o mesmo acidente de automóvel, serão dez reportagens distintas porque há muitos ângulos que podem ser abordados nesse acidente. Quem bateu em quem, a qual velocidade, se houve desrespeito aos sinais, se havia sinais, enfim, há muitas outras perguntas no lide para se fazer um recorte. Logo, o recorte realizado é parcial. O que não pode é o profissional criar, inventar ou embutir opiniões com um viés ideológico neste recorte.
O filtro de boa informação
Como antídoto a essa tendência, há um fundamento claro e inegociável no jornalismo: a independência. É a independência que fará o jornalista, por mais ideologia que tenha o seu conjunto de valores pessoais, olhar para um simples acidente de trânsito como um simples acidente de trânsito que merece um trabalho de apuração jornalística. Se o jornalista começar a sua matéria dizendo: “Em dez anos de governo do partido do X, os acidentes quadruplicaram na rua Y com relação à administração anterior do partido W. Falta vontade política para resolver esse problema e evitar mais mortes naquele trecho”, ele já atropelou a sua independência. Por mais que o seu instinto o leve a associar o acidente aos oito anos de má administração (no seu entender, resta claro) do governo de um determinado grupo político, ele está ali cobrindo um acidente de trânsito, no qual ele deve apurar quantos carros estão envolvidos; se há feridos e para onde eles foram levados; colher depoimentos que o ajudem a traçar uma argumentação lógica sobre a ocorrência; ouvir autoridades, evidentemente, se nos depoimentos ficar clara a desídia do poder público com uma situação que aos olhos da população é frequente; enfim, deve apurar e transmitir a informação apurada e só.
Se quiser comentar ou tornar o texto pessoal embutindo opinião à mensagem, basta usar uma página pessoal, ou deixar claro, evidente, cristalino, que se trata de um artigo, de uma opinião, pessoal ou do veículo, e não de uma reportagem. Enquanto repórter, o profissional deve lealdade ao público e não há lealdade sem independência jornalística e veracidade de fatos. E a veracidade dos fatos fica comprometida se filtrada ideologicamente.
A ideologia seguida por uma pessoa pode ajudá-la a definir o que é certo e o que é errado segundo os seus valores e isso não significa que necessariamente outra pessoa de outra corrente compartilhe da mesma opinião e esteja essa outra pessoa com a razão ou sem ela. No campo da opinião, o certo e o errado, às vezes, atropela até o bom senso jurídico. Daí a necessidade de independência porque, por mais bem intencionado que esteja o repórter, ele não é o dono da verdade, pode cometer erros e induzir o público a errar junto, em nome de uma causa, o que é inadmissível. É esse cuidado jornalístico que separa os profissionais do jornalismo dos usuários contumazes dos meios de comunicação, sobretudo da internet.
O jornalista Geneton Moraes Neto costuma dizer que nessas muitas décadas de jornalismo, o tira do sério ver um jornalista em redação dizer que não vai cobrir ou entrevistar uma determinada personagem jornalística porque ideologicamente contraria aos seus princípios. Conclui-se, então, que, em nome dos próprios princípios, esses jornalistas sonegam informação à população. Alguém pode evocar o grande Millôr Fernandes e dizer que a imprensa é oposição. A imprensa, de fato, é oposição, até porque o oficialismo já dispõe de secretarias de Comunicação em tudo o que é órgão público, para dar publicidade a assuntos do interesse da administração pública e dos administrados. Contudo, não há oposição responsável que se sustente sem fatos e argumentos verdadeiros.
Se a realidade causa indignação, cabe ao repórter apurar mais e melhor, mostrar essa realidade, conseguir dados, argumentar, fazer uma boa reportagem porque a própria repercussão desse trabalho, se realizado com correção, movimentará a opinião pública e ajudará a buscar soluções, caso haja discrepâncias.
O legislativo, o executivo, o judiciário e o jornalismo, por meio de editoriais e artigos, e a própria sociedade civil, de forma direta, se encarregarão do resto. É nociva a premissa segundo a qual o cidadão comum precisa de um tutor que lhe diga o que é certo e o que é errado fazer. O cidadão necessita, sim, é do filtro, de boa informação, para tomar as suas próprias decisões. E esse filtro é válido se feito com independência porque um repórter dependente não faz jornalismo; faz propaganda da ideologia que defende e isso é desonestidade com o público.
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[Marcelo Feitoza é jornalista, Rio de Janeiro, RJ]