Uma receita de sucesso com tudo o que há de pior: notícias duvidosas, fontes compradas, crimes, cadáveres, escândalos, bundas e peitos na capa. O jornal popular Bild, que faz jus ao seu nome de “imagem”, comemora 60 anos e deixa de presente, nas caixas de correio de 41 milhões de alemães, um exemplar impresso comemorativo. Para alguns, é o tipo de coisa que não se quer nem de graça.
Cito aqui um exemplo cotidiano, que parece anedota, mas é corriqueiro e verdadeiro: no domingo (24/6) pela manhã, estive na padaria aqui perto de casa. Entrou um cliente, pediu um café, sentou-se ao balcão e começou a ler o Bild. Imediatamente, o padeiro enfureceu-se e, por mais que isso pareça raro, levantou a voz: “O senhor não ouse folhear essa porcaria aqui no meu estabelecimento”. Bem tranquilo, o cliente fechou o jornal, tomou seu café sem reclamar e foi embora. Mas esqueceu malandramente o Bild sobre o balcão.
Talvez seja essa mistura de má fama com atratividade mórbida que garanta a longevidade do jornal. Todo mundo só fala do Bild, principalmente mal, e ao mesmo tempo todo mundo compra o Bild. Mesmo com a crise do impresso a partir dos anos 1990, trata-se ainda do veículo mais vendido na Alemanha, com circulação diária de 2,6 milhões de exemplares. Se compararmos com o jornal brasileiro de maior tiragem, ainda ganha. Lembremos que a Folha de S.Paulo lança aproximadamente 300 mil exemplares por dia, num país de 190 milhões de habitantes. E que a Alemanha tem população decrescente que não chega à metade da brasileira. É claro que, neste caso, a comparação é apenas quantitativa – se bem que em muitos momentos a Folha não resiste à nostalgia de ressuscitar o antigo irmão editorial Notícias Populares, mas isso não interessa aqui.
A última saia justa
Se na Alemanha o Big Brother não tem quase nada de audiência, é no Bild que se mata a sede voyeurista. Verdadeiro fetiche nacional, dá ocupação suficiente para o restante da imprensa, séria ou não. No domingo (24), ele faz a manchete de importantes jornais e revistas do país como Frankfurter Allgemeine, Die Zeit, Die Welt e Spiegel. Igualmente aparece nos principais canais de televisão, privados e estatais, que lhe dedicam documentários, debates, reportagens, menções.
Sua história coleciona escândalos que envolvem celebridades e políticos. E trata-se de um jornal abertamente alinhado com os poderes. Nos anos 1950, o discurso era anticomunista. Nos 1960, contra os estudantes. Nos 1970, contra os sindicatos. A última grande saia justa, em janeiro deste ano, rendeu a demissão do presidente da República, Christian Wulff, que trocava telefonemas com o diretor do jornal Kai Diekmann, sugerindo-lhe pautas. No mais, não é necessário saber ler em alemão para entender as mensagens do Bild. Em caso de curiosidade, é mais efetivo acessar a página do jornal na internet onde, tanto quanto na versão impressa, as imagens gritam por si.
O que há para ser comemorado?
Essa pergunta já foi feita há dez anos pelo jornalista Günter Wallraff, quando o Bild apagou as velinhas de 50 anos. Ele é um dos idealizadores do movimento anti-Bild, do qual já participaram ou participam importantes nomes da intelectualidade alemã, entre eles os escritores Heinrich Böll, Jürgen Habermas e Günter Grass.
Wallraff, expoente do jornalismo de imersão investigativa, infiltrou-se como repórter em 1976 na redação do Bild, onde trabalhou por três meses utilizando o nome falso de Hans Esser (algo traduzível como “João Comilão”). O resultado da experiência foi a publicação, em 1977, do livro O editorial (Der Aufmacher), relatando as falcatruas de bastidores do jornal. Nos anos seguintes, publicou ainda outros dois títulos anti-Bild, nos quais revelou os métodos desonestos e mesmo ilegais de apuração e entrevista daquela redação. Para ele, o periódico não conhece lei nem limite moral. Os funcionários são tratados de modo vil. Os leitores, como imbecis analfabetos. As fontes, vampirizadas. Enquanto isso, as somas em euros são milionárias. Em todas as instâncias, há desrespeito e crueldade.
Desrespeito por entrar via correio, sem ser convidado, em 41 milhões de lares. Crueldade por dizer que isso é festa de aniversário. Espero que colegas brasileiros, radicados ou não na Alemanha, contribuam com análises sobre o fenômeno Bild, cujos efeitos ultrapassam as questões técnicas do jornalismo e por isso merecem ser tratados com cuidado interdisciplinar.
Veja também
>>Bild, edição comemorativa dos 60 anos
>> Günter Wallraff, página pessoal do jornalista
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[Danielle Naves de Oliveira é jornalista, tradutora e doutora em Ciências da Comunicação pela USP; em Marburg, Alemanha]