Há quase uma década, observo que a imprensa americana, quando comenta algo sobre Rodney King, costuma apresentá-lo como o personagem principal da primeira reportagem cidadã. King foi o afro-americano filmado por um cidadão comum enquanto levava uma tremenda surra da polícia, em março de 1991, em Los Angeles. A repetição das imagens pela televisão levou aos distúrbios urbanos de 1992 na cidade dos “anjos”, quando um júri local absolveu os policiais responsáveis pelo brutal espancamento. Foram encontradas em exame pericial cerca de 50 marcas de cassetes em seu corpo. Rodney King morreu no domingo, dia 17/6/2012. Afogou-se em sua piscina, aos 47 anos.
Este ano, nada mudou: o New York Times (18/6), por meio de seu blog mediadecoder, o Huffington Post e o Pointer Institute – todos no mesmo dia – ressaltaram a presença de King como fundamental para o surgimento do jornalismo colaborativo. O Washington Times Communities (17/06) o apontou como “catalisador” do jornalismo cidadão (o periódico é a versão do Washington Times escrita por colaboradores profissionais independentes). Este último apresentou a melhor matéria sobre o assunto. O Huffington Post também merece crédito por ter trazido uma informação essencial: a primeira filmagem “cidadã” a ser transmitida ao público foi a de Abraham Zapruder, o empresário de Dallas que filmou em formato 8 mm os últimos minutos do assassinato do presidente Kennedy, em 1963, e que foi ao ar pela primeira vez em 1975 no programa GoodNight America, da rede ABC de televisão.
O blog comunitário do Washington Post trouxe a reportagem mais completa de todas. Gayle Falkenthal, ex-editora de rádio e atual consultora de comunicações, foi a colaboradora que escreveu o artigo. Ela começa com a narrativa do caso King, cujo carro foi parado pela polícia de Los Angeles após uma perseguição pelas ruas da cidade. Tudo aconteceu na madrugada do dia 3 de março de 1991. Ninguém deveria estar nas ruas àquelas horas. Los Angeles é uma cidade que dorme cedo. Muito cedo. Mas aquela madrugada foi diferente.
Desilusão com a imprensa
O encanador George Holliday, imigrante argentino de origem britânica, estava acordado em seu apartamento, depois da meia-noite. Ouviu o barulho da abordagem, as vozes exaltadas e resolveu sair às ruas. Ao ver a cena brutal, resolveu voltar para casa e filmar tudo com uma pequena câmera. Discutiu com sua mulher o que fazer com a fita. Decidiram entregá-la à KTLA, uma retransmissora de TV local. Holliday inicialmente nada pediu pela filmagem, “mas eventualmente recebeu 500 dólares da emissora”, que posteriormente passou o material para a CNN, informou o periódico de Washington.
Posteriormente, ele processou as duas emissoras por “violação de direitos autorais”, mas a justiça decidiu não aceitar seu caso. Um juiz declarou que ele havia realmente permitido que o vídeo fosse ao ar e partilhado. A transmissão original e a retransmissão pela CNN foram consideradas “de uso justo”, com a Primeira Emenda a garantir e proteger a transmissão de “certos trabalhos de grande importância para o debate democrático”. Segundo muitas fontes de notícias norte-americanas e alguns acadêmicos, assim abriram-se os caminhos para o jornalismo cidadão.
O apoio legal foi fundamental para encorajar outros indivíduos a participar do mundo das notícias, mesmo sem vínculos formais com o jornalismo. Mas não ajudou nada George Holliday, que não foi reconhecido como o primeiro jornalista cidadão. E também não poderia sê-lo porque sua ação foi eventual, não se tendo convertido em prática sistemática de atos jornalísticos. Holliday continuou a desentupir canos e ganhou apenas uma grande desilusão com a imprensa. E um punhado de dólares.
Pioneiros na história do jornalismo cidadão
Tudo foi diferente para Timothy Goldman, que um ano depois, durante os distúrbios que abalaram a cidade, conseguiu infiltrar-se entre os manifestantes e arruaceiros e começou a filmar tudo. Toda a violência: os incêndios, os saques às lojas locais e os donos de lojas armados nos telhados de seus estabelecimentos a proteger suas mercadorias. Foi dele a filmagem que horrorizou a América branca, ao mostrar o motorista de caminhão Reginald Denny sendo arrancado de seu veículo e violentamente agredido com chutes, socos e golpes por todo o corpo. Acredito que muitos ainda guardam na memória a figura do homem de longos cabelos louros a ser brutalizado pela multidão enfurecida. Um transeunte agressor ainda acrescentou passos de dança à cena dantesca. Esta cena estremeceu as sempre tensas relações raciais nos Estados Unidos.
Enquanto a turba barbarizava o motorista, Goldman subiu para a capota do veículo e filmou tudo. Estava desempregado e reteve sua filmagem. De início, recusou-se a vendê-la. Uniu-se ao estudante de Jornalismo Gregory Sandoval, que também estava a cobrir por conta própria os acontecimentos. O universitário aconselhou Goldman a não vender o vídeo e ofereceu-se para ser seu agente. Os dois posteriormente fizeram uma pequena fortuna com tudo o que filmaram. O principal, a cena do motorista louro duramente espancado, foi obra de Goldman.
A ação dos dois jovens no tumulto de quatro dias contrasta com a de Holliday, que agiu guiado por impulso, sem saber muito bem o que fazer com o que filmara. Goldman e Sandoval comportaram-se de forma diferente. Em primeiro lugar, não estavam em casa quando os distúrbios ocorreram. Foram atrás da notícia porque sabiam seu valor. Principalmente Sandoval, o estudante de Jornalismo que orientou o “colega” a guardar o material para uma ocasião propícia para distribuição e venda do que tinham filmado. A dupla pode ser considerada pioneira, na história do jornalismo cidadão. E é necessário ressaltar que este nasceu debaixo da ótica do valor em dinheiro como pagamento por trabalho executado.
Oito minutos
Mas o valor da notícia não se traduz apenas em dinheiro pago as reportagens, sejam elas cidadãs ou profissionais. O exemplo de George Holliday, cidadão americano desde 2006, tem que ser reconhecido por sua importância cívica e humanística, por mostrar aos norte-americanos e ao mundo que os cidadãos que testemunham fatos de importância jornalística podem ter seus trabalhos publicados ou transmitidos pela mídia. E que noticiar não é privilégio dos diplomados ou escolados em jornalismo.
A cena brutal por ele filmada em 1991 não lhe trouxe muitos benefícios. Ao contrário: ele era um bem-sucedido desentupidor de canos, casado, quando filmou as cenas da surra em Rodney King. Agora está separado e sobrevive em condições modestas. Não gosta da imprensa, durante muito tempo garantiu não ler mais jornais e ainda tenta ganhar alguma coisa a mais com a filmagem que o levou às manchetes. O jornalismo cidadão terá para George Holliday sempre um sabor doce-amargo: o triste fato filmado por ele o levou ao conhecimento do público, mas não ao sucesso ou ao dinheiro. Ele garante que não lamenta e que fica feliz em “entrar para a história” como o relator da grande injustiça que pôs em questão tanto as relações raciais quanto a atuação da polícia nos Estados Unidos.
Em 2006, o jornal Los Angeles Times (19/6) fez uma reportagem com ele. O argentino de aparência nórdica mostrou-se amargurado e ressentido. Morava então em San Fernando Valley, uma vizinhança modesta para a classe média baixa da cidade, e ainda trabalhava como encanador e desentupidor de canos. Nesse ano tornou-se cidadão americano e lançou um DVD com os oito minutos de sua famosa filmagem no mercado, com fins educacionais. A ideia foi de um amigo de sua infância na Argentina que trabalha em edição e produção para televisão.
Desafio à autoridade
Ainda aturdido pelo que filmara anos atrás, George deixou escapar durante a entrevista com periódico de Los Angeles a motivação visceral que o levou a filmar a brutal cena, em 1991. Chocado com a brutalidade da polícia local, Holliday lembrou ao repórter do periódico de Los Angeles que no país de onde ele veio pessoas simplesmente “desapareciam” sem devido processo, durante a ditadura militar. “A polícia levava as pessoas apenas por suspeitas. Eu não esperava isso nos Estados Unidos”, declarou ele em 2006.
O crédito pelo pioneirismo no jornalismo cidadão pode ter ficado, para muitos, com Goldman e Sandoval, que ganharam bastante dinheiro com suas filmagens. Mas o ex-imigrante argentino, que viveu os anos terríveis da ditadura militar em seu país de origem, agiu sem interesse em ganhos materiais. Intuitivamente, ele foi levado a filmar o espancamento de Rodney King por aversão e desprezo aos abusos contra os direitos humanos que presenciou no tempo em que viveu na Argentina. Sua motivação foi a reação de um homem que viveu e compreendeu a urgência imperativa do registro, em qualquer meio existente e a qualquer hora, da brutalidade dos abusos da autoridade estatal.
Ninguém entendeu melhor o valor da notícia do que George Holliday. Seu impulso indignado contra a violência autoritária do Estado vai viver para sempre em cada um que produz e divulga notícias pelo mundo afora. Se entendermos o jornalismo como um “justo desafio à autoridade” e aos poderes estabelecidos, então o ex-imigrante argentino um dia terá seu lugar garantido e devidamente reconhecido na história do jornalismo.
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[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor]