Na saída do elevador, no 8° piso, vê-se, ao longo do corredor, escuro, a porta entreaberta do apartamento 82. E, ali, postada, está a figura discreta e frágil de Helle Alves, com por volta de 1,5 metro de altura. Quem vislumbra sua imagem, a de uma senhora em seus 85 anos de idade, dificilmente, imagina que se trata também de uma das pioneiras do jornalismo brasileiro. Seu maior feito na carreira foi a de ter noticiado primeiro a morte de Ernesto Guevara de La Serna, o Che, guerrilheiro revolucionário argentino morto em uma emboscada pelo exército boliviano, em 1967. Diversas reportagens abordando a revolução dos costumes, os avanços da medicina na época e os Festivais da Música Popular Brasileira, da TV Record, dos anos 60, também fazem parte de seu acervo.
À porta, ela chama a atenção deste repórter: “É por aqui!” Cumprimentá-la com um aperto de mão pode ser perigoso, se feito de maneira bruta. Portanto, o gesto é delicado. Ela se acomoda no sofá e vai direto ao ponto: “O que você quer de mim?”
Aos 15 anos de idade, começou na imprensa num jornal semanal, o Rádio Olá, cujo dono comandava também a Rádio América. Em 1947, ingressou no setor público como redatora de atas da Assembleia Constituinte, ficando afastada do meio jornalístico por certo tempo. Até que, no fim da década de 1950, foi contratada pelos Diários Associados, do então magnata das Comunicações Assis Chateaubriand. A paixão de Helle sempre foi a reportagem.
Os famigerados vistos
“Sempre trabalhei na editoria de Geral. Cheguei a ser chefe de reportagem e editora de diversas áreas, mas sempre por pouco tempo porque gostava mesmo é de ser repórter de Geral”, conta, acrescentando que o jornalismo da época era muito estimulante, pois o jornalista precisava sair da redação para ir atrás das notícias. “Naquele tempo, não havia satélites ou internet, então o jeito era ir para a rua, pegar a estrada, em busca das informações. A reportagem é a parte viva do jornal!”
Engajada nas campanhas pela emancipação feminina, Helle é uma das precursoras nas redações. Hoje é coisa corriqueira. Mas na época raramente se via uma mulher desempenhando a função. “Nos Diários, só havia uma repórter antiga, boa, a Margarida Izar, mas nossos horários não coincidiam”, lembra. E as poucas corajosas sofriam com o machismo dominante. “Setores como Esporte e Polícia eram verdadeiros ‘clubes do Bolinha’. Ou seja, terreno monopolizado pelo mundo masculino da imprensa. “Mas eu não admitia ser excluída das coberturas de peso, como a guerrilha.”
A respeito do furo de reportagem da morte de Che, ela demonstra modéstia. A atenção da imprensa internacional estava no julgamento do jornalista francês Régis Debray, acusado de integrar a guerrilha na Bolívia. “Eu, o fotógrafo Antonio Moura e o cinegrafista Walter Gianello fomos lá para cobrir o assunto. Deveríamos ir a La Paz buscar vistos. Mas tentamos cortar caminho em Santa Cruz de La Sierra”, relata. Helle conta que, após algumas tentativas em obter os famigerados vistos com os militares, verificou uma intensa movimentação em Valle Grande. O exército boliviano matara quatro guerrilheiros, mas nenhum seria Guevara.
“Devia ter tido mais paciência”
A jornalista, então, foi a La Paz pegar os vistos – toda vez que mudavam de cidade, precisavam de novas autorizações – enquanto seus colegas permaneceram em Santa Cruz para apurar as informações. Helle retornou no dia seguinte e, segundo ela, o clima estava pesado, pois circulava o boato de que Che estava morto. Informação confirmada em Valle Grande com os próprios olhos. A reação dos bolivianos a impressionara. “Uma multidão raivosa invadiu o local onde estava o corpo de Che para destruir o que visse à frente. Mas quando o viram com a fisionomia bonita, sorridente, disseram que parecia com Jesus.” E então se formou uma espécie de romaria, todos a querer ver o corpo de perto.
Por causa da reportagem, Helle foi processada pela ditadura militar, que a proibiu de publicar qualquer coisa sobre Che. Em 1968, o regime engrossou de vez. O Ato Institucional 5 foi decretado. “Tinha um censor na redação com um baita lápis vermelho para marcar com xis o que considerava perigoso. Isso quando não rasgava tudo logo”, recorda. Por causa dessa censura prévia, era preciso colocar a criatividade das pautas à prova. “Fiz reportagens sobre os Festivais da Música Popular Brasileira, os avanços da Biologia e da Medicina (como o bebê de proveta e as pesquisas com clonagem), a emancipação feminina etc.” Mas na época o império de Chateaubriand já estava em decadência, obrigando Helle a deixar o jornalismo diário.
A veterana jornalista diz que, por causa da constante vigilância na redação, havia mais criatividade nas pautas. “Ao contrário de hoje, quando a imprensa é pasteurizada, sem criatividade”, reclama. De uma coisa, Helle arrepende-se: não ter continuado no jornalismo diário. Perdeu o ânimo. Era uma época de repressão da ditadura e os profissionais de imprensa não tinham liberdade para trabalhar. Esse desânimo, segundo ela, afetou muitos colegas. “Devia ter tido mais paciência”, constatou. “Muito jornalista foi se retirando daquele fogo. Tínhamos muito entusiasmo, mas dez anos de regime esfriaram muita gente”, lembra Helle.
“O gravador não tinha funcionado”
Ela critica a burocracia do jornalismo atual. “Os Diários (Associados) era uma redação com todo mundo junto, se trocava muito mais opinião, impressão e ideias.” Após a aposentadoria, morou em Campos do Jordão. Viajou por diversos países. Até mudar-se para Santos em 1992, onde tem se dedicado à defesa dos direitos do idoso em campanhas que culminaram com a aprovação do Estatuto do Idoso, em 2003. Foi presidente do Centro Regional do Idoso. Teve dois filhos, Laedi Rodrigues, 60 anos, doutora em Saúde Pública, e Lael Rodrigues, falecido há mais de 20 anos. Lael era cineasta e autor de livros sobre MPB e deixou, à época, um filho de três meses de idade. Laedi, por sua vez, deu três netos a Helle.
Independente, ela mora sozinha há quatro décadas, desde o casamento da filha. Teve outras paixões, é claro, mas nunca pensou em se casar novamente. Helle preza a própria liberdade, seja na carreira ou na vida pessoal. É de família: sua irmã, a atriz Vida Alves, deu o primeiro beijo da televisão brasileira. Ainda hoje, Helle vive um cotidiano de muitos compromissos, entre os quais, as diversas visitas de estudantes de Jornalismo. Ela conserva ainda o jeitinho mineiro de contar histórias, a voz mansa, mas firme. Em uma dessas visitas, a futura jornalista entrevistou-a durante três horas ininterruptas. “No dia seguinte, voltou desesperada pedindo para fazer a entrevista tudo de novo, pois o gravador não tinha funcionado”, cont. Neste momento, Helle, que já estava mais descontraída, deixa escapar uma gargalhada.
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[Carlos Norberto de Souza é estudante de Jornalismo, Santos, SP]