Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

“Barriga” histórica

“Barriga”, no jargão jornalístico, significa notícia falsa, equivocada, mal apurada. Erro evitável, em suma. Há tempos a mídia americana não produzia um barrigão do tamanho do que confundiu até mesmo o presidente Barack Obama, na manhã de quinta-feira (28/6).

Eram dez horas da manhã em Washington quando o presidente da Corte Suprema dos Estados Unidos, o conservador John Roberts, iniciou a leitura do seu voto sobre a constitucionalidade da reforma do sistema de saúde sancionada por Obama em 2010. Entrincheirado na Casa Branca pelo fundamentalismo conservador que o quer fora dali, e às voltas com a decepção do eleitorado democrata que o entronizou presidente, Obama dependia desse voto para tornar mais robusto seu verbete na história.

Até agora, passados três anos e meio de mandato, seu principal feito tinha sido eleger-se primeiro presidente negro dos Estados Unidos. Mas, dependendo do julgamento da Corte, ele poderia se outorgar um lugar na galeria dos presidentes que, como Franklin D. Roosevelt, Lyndon B. Johnson e Ronald Reagan, imprimiram alterações profundas na malha social da nação.

Seu lugar na história, e talvez suas chances de reeleição em novembro próximo, dependiam desse voto. Compreensivelmente, todas as mídias do país estavam com seus melhores quadros a postos para uma cobertura maciça que prometia ocupar o dia inteiro.

Interpretação correta

Eram 10h06m quando Roberts iniciou a leitura das mais de 50 páginas de seu voto. O documento final tinha 193 páginas e a Corte Suprema não fornece aos jornalistas cópias embargadas para serem digeridas e analisadas antecipadamente. Uma única cópia chega à sala de imprensa e, ao preço de 10 centavos de dólar por página, o catatau pode ser copiado pelos repórteres credenciados. Segue-se a pressa em devorar tudo antes do concorrente.

Foi essa tirania da notícia instantânea em tempos de internet que levou a CNN e a Fox News, duas das três maiores redes noticiosas de televisão, ao erro. A partir das 10h08m, tanto na cobertura ao vivo a cargo do âncora Wolf Blitzer como nas ramificações digitais da empresa (Twitter, e-mails para assinantes, blogs e página do portal) anunciaram que a Suprema Corte tinha derrubado o projeto de Obama. Na concorrente Fox News, líder de audiência nos Estados Unidos e militante engajada na oposição a Obama, a interpretação inicial do voto foi igualmente errada, durante dois intermináveis minutos — uma eternidade, nestes tempos de notícias em nanosegundos.

Apesar de as agências Associated Press, Reuters e Bloomberg terem divulgado o resultado correto, a CNN se manteve soberba por cinco imperdoáveis minutos. Só então o âncora arriscou a primeira correção de curso. “Vamos respirar fundo e aguardar para saber o que os juízes efetivamente decidiram”, suplicou ao vivo. “É possível que [a questão] seja mais complexa do que o que anunciamos inicialmente.” Quando a emissora finalmente colocou no ar a devida correção, junto com a notícia de que o projeto fora, na verdade, aprovado, vários membros do Congresso, plugados na TV já haviam retransmitido a informação errada. O próprio Obama ficou no escuro durante um curto tempo, alternando a leitura das versões do seu discurso pós-voto que tinha em estoque.

Como não lembrar da fatídica primeira edição do Chicago Tribune de 3 de novembro de 1948, cuja manchete — “Dewey derrota Truman” — prevendo o resultado daquela eleição presidencial é até hoje considerada a maior “barriga” de todos os tempos?

No caso de agora, saiu-se melhor quem tinha conhecimento mais sólido do funcionamento da Corte, quem manteve a serenidade sob pressão e quem menos pensou nas demandas do departamento de marketing. Três horas antes da leitura do voto na Corte, Dan Abrams, um analista jurídico da rede ABC, alertava seus colegas: “Cuidado com possíveis erros. Lembrem- se do caso Bush v. Gore”, tuitou ele às 7 da manhã. Abrams fora um dos poucos jornalistas a interpretar corretamente o voto de 12 anos atrás, que deu a vitória a George W. Bush na até hoje polêmica contagem de votos da eleição de 2000.

Pensar duas vezes

O New York Times resistiu bravamente à tentação de sair na frente. Um minuto após a AP ter anunciado a aprovação da lei, o chefe da sucursal de Washington do jornalão postou na internet um curioso pedido aos leitores de suas várias plataformas digitais: pediu paciência. Explicou que o batalhão de repórteres e editores do diário precisava de tempo para analisar os termos do voto. “Quando estivermos seguros, vocês receberão uma avalanche de matérias de qualidade.” E assim foi.

Segundo levantamento com 613 jornalistas sobre mídia digital, compilado este ano pela rede Oriella PR (empresa que reúne 16 agências de comunicação em 23 países), 68% dos profissionais brasileiros declararam usar microblogs como principal ferramenta para captar e disseminar notícias. Boa hora para pensar duas vezes antes de sair disparando tuítes antes de ter os fatos dominados. O conselho serve não só para jornalistas.

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[Dorrit Harazim é jornalista]