Antes, a imprensa sabia o que fazer com ela por ser figura única e protocolar. Mas ultimamente, primeira-dama tem se tornado coisa rara. Os tempos mudaram e as relações adquiriram novas configurações. Lembremos que no Brasil a Presidência da República é ocupada por uma mulher. Na Argentina, igualmente. E que os prefeitos de Paris e Berlim são homossexuais. Todos esses casos excluem a presença de uma primeira-dama. Já passou da hora de não só jornalistas, mas também cerimoniais diplomáticos, tomarem parte na mudança.
O mal-estar dessa condição veio à tona nos últimos meses em pelo menos três situações: o comportamento deslocado de Valérie Trierweiler nos dias que sucederam à posse de François Hollande; a recepção de Michelle Obama às primeiras-damas do G8; e ainda o confuso estado civil do novo presidente alemão, Joachim Gauck. Foram momentos em que os meios de comunicação ora se calaram, ora trataram como se fossem pautas de tabloide matérias que têm, no mínimo, amplitude política, sociológica, antropológica e medialógica.
No começo, ela despertou admiração e mesmo alívio, principalmente nas comparações rasas da imprensa francesa com sua predecessora, a insípida Carla Sarkozy. Afinal, Valérie Trierweiler não é só elegante e bonita, mas sabe falar, tem atuação social própria e, por onde passa, impressiona por sua autoconfiança. Optou por não abandonar as atividades como jornalista na revista Paris Match e no canal de televisão Direct 8. Mas a alegria dos franceses durou pouco. Madame Trierweiler, em entrevistas e tuitadas, deu a entender que o fato de partilhar a vida privada com o presidente da República não a obriga à função de primeira-dama, o que, de fato, é um direito seu. E em seguida, para usarmos um termo do futebol, fez um belo gol contra: sugeriu ao seu público do Twitter que não votasse no candidato de Ségolène Royal, co-partidária de Hollande.
Herr Gauck e suas duas mulheres
A malsucedida manobra deu o que falar no mundo inteiro. Os desavisados aproveitaram para fazer alarde e tudo foi interpretado como orgulho feminino ferido. Todos na França sabem que Royal e Hollande não são apenas copartidários socialistas: embora nunca tenham sido casados oficialmente, viveram juntos por quase 30 anos e têm quatro filhos. Trierweiler entrou na vida do casal anos antes da separação pública, em 2006. Isso tudo só diz respeito a eles. O único problema até agora é que essa dama não sabe ainda onde pisar e nem que tipo de território pretende ocupar. Já estão à sua disposição, no palácio presidencial, quatro funcionários e um gabinete. Em visita aos Estados Unidos, diz ter apreciado os “valiosos conselhos” de Michelle Obama. Vamos esperar para ver.
Michelle Obama é exemplar em seu papel e, mesmo quando a imagem do marido está em baixa, a sua só ascende. Durante a reunião de cúpula do G8, em maio último, ela convidou as oito mais influentes esposas do mundo para uma reunião paralela. Infelizmente não saberemos o que elas de fato discutiram, pois a imprensa mundial só deu conta de comentar seus vestidos, sapatos e penteados. As imagens publicadas do encontro causaram uma mistura de desconforto e anacronismo ao mostrar as senhoras passeando e se deslumbrando pelos corredores da Casa Branca. Uma pena. Além disso, nenhum veículo (pelo menos entre os que consultei) mencionou que não eram oito, e sim sete, as convidadas: não havia primeira-dama alemã, simplesmente porque o posto de chanceler é ocupado por uma mulher. Angela Merkel estava entre os homens e seu cônjuge, físico e professor universitário, não se interessa em nada por esse tipo de chá da tarde.
A Alemanha também tem um presidente da República, cujas aparições são menos frequentes que as da primeira-ministra Merkel mas causam muito mais incômodos protocolares. Joachim Gauck, ao assumir o mandato em maio deste ano, foi alvo de especulações de toda a mídia nacional, inclusive dos veículos considerados sérios. Os jornais não sabiam como abordar o seguinte detalhe de sua vida privada: ex-pastor luterano, o presidente vive com a jornalista Daniela Schadt sem ter, no entanto, se divorciado de sua primeira mulher. O nível do moralismo foi tal que a revista semanal Spiegel dedicou a Schadt matéria intitulada “First lady sem certidão de casamento“.
Nova ordem moral
Jochen Gauck conheceu Gerhild, a esposa, ainda na escola. Casaram-se cedo e tiveram quatro filhos. Não vivem mais juntos há 20 anos e, até o momento, não pensam em oficializar a separação. No mais, os três envolvidos parecem não se incomodar com isso.
O clima de folhetim contaminou a grande imprensa alemã, que negligenciou outros importantes aspectos. Pouco se falou, por exemplo, do passado de Gauck como militante pela reunificação nacional e de sua impecável liderança, nos anos 90, na “Comissão Federal para Abertura e Gestão dos Arquivos da Stasi”, o serviço secreto da extinta Alemanha Oriental. É graças a esse processo que hoje qualquer cidadão tem acesso a documentos que marcaram o destino de milhares de desaparecidos, torturados e investigados pelo regime.
Essa pequena casuística não deve ser tomada como exceção, mas interpretada na direção de um sintoma da cultura segundo a qual antigos protocolos se rompem para dar lugar a novas configurações de papéis privados e públicos, políticos e conjugais. As reuniões de primeiras-damas regadas a chá e biscoitos amanteigados excluem os cônjuges masculinos da cena e condenam por falha moral, na imagem das cadeiras vazias, os governantes solteiros ou cujos cônjuges não têm interesse em participar do teatro político. Com isso, fica um posto vacante na política, antes destinado a mulheres bem educadas, bem vestidas e bem penteadas, caseiras, maternas, com vocação ao assistencialismo e em perfeita sintonia com os projetos do marido.
É possível que a força simbólica da primeira-dama não desapareça tão cedo. Mas não seria mau se ela enfim desse espaço à pluralidade e a uma nova ordem moral no imaginário político.
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[Danielle Naves de Oliveira é jornalista, tradutora e doutora em Ciências da Comunicação]