Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Além das aparências

Reformas gráficas de jornais são em geral cosméticas, mas se prestam magnificamente aos propósitos publicitários das empresas que os editam: a atração pelo chamariz visual da nova estética facilita a publicação de artigos e a organização de debates em que os editores reiteram seu compromisso com os nobres princípios do jornalismo – a conhecida defesa da imparcialidade, do pluralismo, da ética, da apuração rigorosa dos fatos decorrente do compromisso com a qualidade da informação. Previsivelmente, foi o que ocorreu com a apresentação do “redesenho” do Globo, anunciado ao longo da última semana de julho e mostrado aos leitores na edição de domingo (29/7), data do aniversário de 87 anos do jornal.

A diferença, agora, é que uma reforma gráfica, nesses novos tempos virtuais inaugurados pela tecnologia digital, iria na contramão do que vem sendo anunciado como o futuro do jornalismo – entre os que não caem no conto do fim dessa necessária atividade profissional, naturalmente –, pois evidentemente aponta para a valorização da publicação impressa. Por isso Alberto Dines, em artigo publicado neste Observatório (“Mudança para acabar com mudanças“), saudou a mudança como uma “audaciosa reviravolta conceitual”, capaz inclusive de redefinir o panorama jornalístico brasileiro.

Essa redefinição, entretanto, implica uma série de questionamentos quanto ao próprio papel do jornal (de papel), à formação dos responsáveis por produzi-lo e à prioridade em relação à qualidade da informação. Além disso, como se costuma verificar não apenas no Globo mas na grande imprensa de modo geral, o alardeado cuidado com a credibilidade esbarra em práticas incompatíveis com esse propósito.

O jornal de papel e seu espelho digital

A aposta na permanência do jornalismo impresso se baseia na consideração do vice-presidente das Organizações Globo, João Roberto Marinho, de que “o papel ainda é a melhor mídia, a melhor plataforma de suporte para você ter um conjunto de informação organizada e estruturada”, capaz de aprofundar a abordagem dos temas. “O jornal oferece o texto longo e, junto, a ilustração visual, o gráfico e a boa foto, de uma forma que dificilmente outra plataforma te dá.” Além disso, “a facilidade de visualizar tudo e ter tudo na sua mão, de levar para ali, acolá, de ser portátil, são muito agradáveis”.

No debate sobre “O papel do jornal”, que O Globo promoveu em seu auditório no dia 24/7, o editor executivo da Folha de S.Paulo Sérgio D’Ávila foi na mesma direção, mas fez uma ressalva importante: “Ainda não inventaram um meio que ofereça o prazer tátil que o jornal proporciona e a portabilidade que os tablets têm, embora os jornais ainda saiam ganhando”.

Desde que os tablets surgiram, a questão da portabilidade deixou de ser um problema. O único entrave é o alto preço do equipamento e o baixo poder aquisitivo da maioria de nossa população, mas o barateamento desse produto é questão de tempo. Além disso, em fins de janeiro deste ano O Globo anunciou o lançamento de seu “vespertino digital“, “um produto pioneiro, que une o melhor do jornalismo com uma nova experiência de leitura”, com reportagens especiais exclusivas, além de uma série de informações e serviços.

Esse investimento, embora restrito a quem possui tablets, aponta um caminho distinto do da valorização do jornal de papel, embora a reforma gráfica já estivesse em gestação. Pode indicar uma tendência à complementaridade entre os diferentes meios. Mas seria essencial informar o custo do impresso em comparação com uma versão digital do mesmo produto: este dado é imprescindível para sustentar perspectivas em torno da preservação do jornal tradicional.

Quanto ao pretendido aprofundamento das reportagens, o próprio Globo, ao reformar seu site, meses atrás, passou a apostar no que chama de “matéria viva”, relativa a algum fato de grande impacto que possa ser atualizado permanentemente ao longo do dia e, talvez, dos dias seguintes: são matérias necessariamente longas e – pelo menos em princípio – densas, exatamente como seriam publicadas no papel, o que contraria a tese – prevalecente no meio acadêmico, aliás, mas desmentida por jornais de grande audiência como o Daily Mail – de que o texto para a internet deve ser curto e cheio de hiperlinks.

O importante, o interessante… e as bruxarias

“Unir o importante ao interessante” foi uma frase reiterada várias vezes pelos jornalistas que participaram do processo. “Interessante”, costumava ironizar o saudoso professor Manoel Maurício de Albuquerque, “é uma dessas palavras que não querem dizer nada” – que não têm substância, em suma. No contexto do jornalismo, é claro que a palavra diz respeito aos chamados fait-divers, aqueles fatos incomuns, surpreendentes, curiosos, bizarros, que costumam atrair a atenção do grande público. Mas certamente se refere também às novidades tecnológicas com as quais o jornal trabalha. Por exemplo, as “fotos vivas”, anunciadas no domingo (5/8), que integrariam o papel ao smartphone (ver aqui): ao aproximar seu aparelho – não qualquer um; apenas os mais modernos, desses com aquela profusão de aplicativos que ninguém usa – de fotos com um determinado símbolo no jornal impresso, o leitor veria a imagem se mexer, tal como na demonstração disponível aqui.

É um procedimento similar ao dos QR codes, ou códigos de barras bidimensionais, já utilizado pelo jornal em algumas matérias e presentes em certos anúncios. A propósito, há dois anos Marcia Benetti e Laura Storch analisaram a adoção dos QR codes pela Veja em seu “Guia da Copa 2010” [www.matrizes.usp.br/index.php/matrizes/article/view/67], no qual a revista convida o leitor a entrar naquele “fascinante (e inédito) universo de imagens, informações e jogos virtuais” e ressalta o “show de interatividade” daquela edição que vai “muito além do papel” e proporciona a experiência da “realidade aumentada” ao “produzir recursos divertidos” e “casar o lúdico com a notícia” (ver “Jornalismo, convergência e formação do leitor“).

Tudo rigorosamente coerente com o atual discurso do Globo de associar o importante ao interessante, com essa pitada de magia que é levar o leitor – pelo menos aquele que dispuser do equipamento adequado, o que não deixa de ser uma forma indireta de estimular a compra desses aparelhos – a capturar da página inerte uma imagem em movimento.

O fetiche da tecnologia

Que valor esse recurso “agrega” à informação, não se sabe. Tampouco se explica por que esses vídeos não devessem ser acessados diretamente no site, simplesmente por meio de um clique no mouse ou um toque na tela do tablet, dispensando o trabalho de se lidar com dois suportes distintos – jornal e celular.

Pode ser mesmo apenas mais uma forma de atiçar a curiosidade do público e envolvê-lo na aura de mistério que essa tecnologia proporciona. Não por acaso a matéria sobre essas “fotos vivas” abre com uma referência a Harry Potter.

Pode ser também, como diz Laura Storch, uma forma de demonstrar que o jornal está antenado com as últimas novidades do mundo digital e as oferece ao leitor. O fetiche da tecnologia nos acompanha historicamente, mas é muito mais intenso agora, com o bombardeio publicitário que nos obriga à diversão permanente.

Qual credibilidade?

Se, em vez de investir na mais recente mirabolância digital, o jornal se preocupasse com a qualidade da informação, o resultado poderia ser outro. Porém, no caso do Globo, essa preocupação esbarraria justamente na promessa de manutenção do “DNA” da empresa. De fato, a reforma gráfica foi vendida como uma nova forma – mais leve, mais agradável ao olhar – de se produzir o mesmo jornal de sempre, que, de acordo com seus editores, teria na credibilidade seu valor fundamental. Sob esse aspecto, não é preciso muito trabalho para expor a falácia do discurso: semanas atrás, este Observatório publicou artigos que demonstravam como o jornal distorcia informações sobre o reajuste dos professores federais em greve (“O jornalismo cego às armadilhas do discurso oficial“) e manipulava estatísticas para forjar um quadro em que os servidores públicos do Executivo apareciam com um “reajuste médio” muito maior do que o dos trabalhadores da iniciativa privada (“A manipulação dos números“ e “Alhos, bugalhos e contas tortas“).

Bem a propósito, valeria a pena comparar a reportagem “Servidores grevistas já estão na nata do funcionalismo federal“, publicada em 23 de julho pelo Globo, com outra sobre o mesmo tema, em 3 de agosto, que também condena o movimento grevista no serviço público mas reconhece a enorme discrepância na remuneração entre classes diferentes do funcionalismo. Num caso, valeu o cálculo pela “média”; no outro, atentou-se para a proporcionalidade.

Nem se diga da campanha explícita em favor da política de segurança pública do governo estadual, expressa não apenas no enaltecimento das UPPs como na retórica da guerra contra os traficantes, dos quais as manchetes sobre “o Dia D” – relativa à “retomada” do Complexo do Alemão – e “A Rocinha é nossa”, no mesmo contexto, são apenas os exemplos mais evidentes.

Já na nova fase do “redesenho”, a manchete de domingo (5/8), não deixa dúvidas: “Tropa de 150 advogados vai tentar salvar os réus” é um primor de síntese que alia o descrédito da instituição judicial à indução de animosidade contra réus e advogados, na mesma linha da crítica de Janio de Freitas sobre a cobertura do “mensalão” (ver “O julgamento na imprensa“).

Investir em jornalistas

Quando O Globo lançou a campanha “Muito além do papel de um jornal”, exaltando as virtudes da interatividade multimídia, Alberto Dines identificou ali “apenas uma frase de efeito, sem qualquer sentido” (“O Globo vai além do papel. E o papel do jornal?“), pois o essencial seria investir em jornalismo e jornalistas. “Paratransformar em pílulas as análises políticas ou econômicas que o leitor espera do seu informador”, dizia ele, “será necessário contratar redatores qualificados capazes de fazer a ‘compressão’ do texto sem a supressão de ideias ou dados”.

A aposta na interatividade se mantém, e nem poderia ser diferente diante das possibilidades oferecidas pela tecnologia digital. Mas o problema continua, sobretudo quando alegadamente se pretende valorizar o impresso: onde o investimento em jornalistas, sobretudo jornalistas tarimbados, capazes de contextualizar a informação e fornecer ao leitor hipóteses de interpretação e aprofundamento que justifiquem a leitura em papel?

No vídeo de apresentaçãodo novo projeto gráfico, o editor executivo Pedro Doria destaca a mudança como um símbolo “do fim de um processo de integração da redação”, em que uma mesma equipe produz para o impresso, para o tablet, para o site e para o celular.

Em seu artigo de quatro anos atrás, Dines forneceu um diagnóstico preciso sobre essa situação:

“Os projetos de interatividade no Brasil visam apenas à rentabilização do investimento na redação: sai mais barato contratar um jovem profissional disposto a fazer três versões da mesma notícia do que admitir um jornalista experiente capaz de oferecer um material jornalístico de qualidade, ainda que em formato único”.

Se fosse escrito hoje, não precisaria de ressalva.

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[Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)]